Em determinado momento durante a projeção de “Antes o Tempo Não Acabava”, novo filme de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, um jovem experimenta passar batom nos lábios e mexer nos cabelos olhando-se no espelho, num exercício de imagem e androginia. Esse ritual perpassa uma descoberta documentada antes no cinema, até que ele continua sua exploração, desenhando linhas tribais em seu peito, tornando o ato mais ambíguo.

O jovem, Anderson (Anderson Tikuna), é um indígena que vive na periferia de Manaus e serve como nosso par de olhos para a realidade do êxodo dessa população que habita um entrelugar tanto geográfico quanto sociocultural, situando-se no meio entre suas tradições e a modernidade de uma sociedade que ainda os vê com estranheza.

“Antes” quer discutir a questão da identidade não só cultural, mas também sexual, com Anderson tentando se achar nesse campo tanto quanto na vida da cidade. Nesse sentido, o longa pode fazer uma boa sessão dupla com “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert, que também propunha uma análise de certo despertar sexual em meio a um conflito maior.

Cena de Antes o Tempo Não Acabava, de Sérgio Andrade

Como no filme de Anna, o protagonista aqui se relaciona com mulheres e homens, com direito a uma longa e bem-filmada de cena de sexo homossexual que rivaliza, em sensualidade, às de “Tatuagem”, de Hilton Lacerda. No entanto, enquanto “Mãe” se debruçava mais sobre esse aspecto de seu protagonista, Sérgio e Fábio deixam seu filme mais amplo e, de fato, seu roteiro tenta abraçar o mundo, com tópicos como alcoolismo, infanticídio e a relação dos índios com ONGs e projetos sociais sendo tocados para serem abandonados rapidamente.

Como o filme se limita à perspectiva de Anderson, no entanto, essa rápida sucessão faz sentido dentro da narrativa e, mesmo considerando seu louvável escopo, o longa consegue com sucesso colocar diante do espectador a seguinte pergunta: “Como você concilia seu futuro com sua personalidade se o mundo parece defini-la pelo seu passado?”.

A rejeição de Anderson à sua própria cultura e sua busca por algum tipo de reconciliação é o que movem a trama, que sinaliza um salto gigantesco dado por Sérgio desde seu último longa, “A Floresta de Jonathas”, no qual ainda parecia estar se acostumando com todas as possibilidades do formato de longa-metragem.

Os realizadores pintam seu realismo com diversas decisões estilísticas interessantes: a cena que descrevi no início do texto, por exemplo, evoluiu para o encontro com uma divindade trajada de camiseta e bermuda que fala com o protagonista por telepatia (devidamente legendada). Além disso, a decisão de povoar o longa com pequenos interlúdios impressionistas permite ao espectador bem-vindos respiros dos tópicos levantados pelo filme.

O contraste entre tradicional e moderno também se reflete na trilha sonora, que encontra espaço para gravações de cantos indígenas, bandas de rock de Manaus e o eletrônico europeu mais “cool”. Uma sequência, embalada pelo clássico “Radioaktivät”, dos alemães do Kraftwerk, ganha ares transcendentais pela canção, usada com grande efeito por diretores do calibre de Rainer Werner Fassbinder no passado.

Antes o Tempo Não Acabava

Sérgio se mostra interessado por histórias que acontecem à margem da capital amazonense e é interessante como ele se aproxima da cidade em seu segundo longa. Se em “Floresta”, ela era uma promessa e uma tentação que existia longe da ação, “Antes” exibe largamente a Manaus da periferia, das invasões do Distrito Industrial, dos bares da orla, o que nos permite divagar se seu próximo projeto o levará mais perto do centro da cidade. Não que seja necessário: o diretor já colhe louros de um trabalho sólido e continua sua jornada ascendente.

Há uma grande tentação em julgar “Antes o Tempo Não Acabava” por sua importância para o cinema do Amazonas, mas essa é uma abordagem reducionista. Bater palmas para o que ele representa fora da tela sem mencionar o sucesso do que se propõe a fazer dentro dela é tornar a não enxergar um ser muitas vezes tido como exótico, mas que é, acima de tudo, humano.