Para retornar a falar de cinema aqui no Cine Set, antes preciso falar de Manaus.
O Cine Set sempre teve orgulho de ser um site de cinema independente produzido aqui na capital amazonense e, diante da maior tragédia da história da cidade, não dá para seguir adiante sem falar sobre isso.
O torpor do momento guia as frases a seguir.
A foto acima é de autoria de Raphael Alves, responsável pelos registros mais dolorosos e brilhantes da pandemia em Manaus. Gentilmente, ele autorizou a utilização da foto neste post.
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A Manaus de 351 anos chegou ao fim simultaneamente com o oxigênio dos hospitais da cidade no dia 14 de janeiro de 2021. Naquela manhã desesperadora de notícias chocantes de tão inacreditáveis, qualquer fachada de civilidade e modernidade da propagada metrópole da Amazônia desmoronou diante da ausência do insumo mais básico para salvar uma vida. Da forma mais cruel, a pandemia jogou ali na nossa cara a realidade distópica em que vivíamos.
Gostaria de dizer que foi uma surpresa tamanha tragédia, mas, infelizmente, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso sabia que uma pandemia tinha tudo para trazer esta catástrofe. Com seus planos de saúde da Unimed, Hapvida ou Samel, a elite e classe média (a qual me incluo) nunca se importaram com as péssimas condições de trabalhos para médicos e enfermeiros em hospitais públicos sucateados – nem vale citar aqui o descaso da turma que está em outro patamar e realiza seus check-up anuais no Albert Einstein ou Sírio Libanês. Dirá alguém: ‘mas, os políticos e as roubalheiras deles são os culpados’. Sem dúvida a parcela deles é enorme, mas, que tipo de sociedade somos a ponto de aceitar durante todo este tempo o inacreditável fato de não termos uma UTI sequer no interior do Amazonas, um Estado do tamanho de diversos países da Europa e América Central?
Nesta distopia, o combate ao vírus encontrou brechas perfeitas no saneamento básico precário de Manaus impedindo milhares de pessoas a ter o mínimo de dignidade em suas casas; nas moradias indignas que nada contribuem para o isolamento social; no abastecimento de água deficiente nas regiões periféricas; na ganância de parte significativa da classe empresarial explorando pessoas sem condições de dizer não por motivos econômicos; e o populismo de políticos, líderes religiosos e apresentadores de televisão com crendices e negacionismo através de desinformação para pessoas assustadas e ensinadas por toda vida a obedecer e jamais contestar.
A COVID-19, democrática que só ela, entretanto, derrubou tudo isso e aproveitou estes maus caminhos para impor o horror em todos nós. Passada a primeira onda, entretanto, Manaus decidiu dobrar a aposta e, em um surto coletivo, casamentos, torneios de futebol, baladas, formaturas, aulas presenciais, aniversários, shows, viagens de férias, confraternizações de fim de ano, festas de Natal e Réveillon proliferaram e, unindo bolsonaristas e petistas, ricos e pobres, Ponta Negra e Mutirão, decretamos o fim da pandemia.
Como um oponente estrategista brilhante, o vírus deixou pensar que vencemos, evoluiu e, na hora que se revelou, aplicou o golpe fatal na cidade. A tragédia da corrida pelo oxigênio continua e deve seguir nos próximos dias, enquanto pacientes se acumulam nos corredores lotados dos hospitais públicos e privados. Os enterros feitos a toque de caixa, sem qualquer vestígio de humanidade, completam este cenário devastador.
Encolhidos em casa, aguardamos o fim da tempestade para colocarmos a cabeça para fora. Mas, qual será a realidade?
A distópica Manaus sem árvores, com vergonha de suas raízes indígenas e ancestralidade?
A Manaus acostumada com os fogos de artifícios para celebrar os aniversários de líderes de facções criminosas?
A Manaus da violência policial e do tráfico de drogas?
A Manaus dependente de afagos de outras regiões para se sentir valorizada?
A Manaus de professores abandonados à própria sorte nas escolas públicas e relegados a meros conteudistas das escolas privadas?
A Manaus que observa a multiplicação de famílias nas ruas?
A Manaus que critica (justamente) o governador, mas aplaude com enorme audiência o seu substituto grotesco?
A Manaus que vê as mesmas famílias se revezarem no Judiciário local?
A Manaus dependente de um modelo econômico ‘provisório’ com mais de 50 anos?
A Manaus que vira às costas aos seus espaços culturais e artistas?
A Manaus que espalha cartazes de adoração àquele que a sufoca?
Se fosse no cinema, diante desta realidade, um produtor diria que Manaus precisaria de um reboot, ou seja, recomeçar do zero sua história.
A questão é saber se teremos forças para isso ou se já não vale mais a pena.