A franquia de filmes do agente secreto James Bond, o 007, já quase sessentona, virou uma instituição cinematográfica. E quando algo vira uma instituição não se pode mexer muito nela. Não é possível adentrá-la e começar a mudar as coisas de lugar ou fazer diferente do que sempre se fez. Ou pelo menos assim se pensava…
Desde que o ator inglês Daniel Craig assumiu o papel de Bond, a instituição foi sacudida. Primeiro com a reinvenção promovida com 007: Cassino Royale (2006) – o melhor filme da franquia em todos os tempos – e depois com os demais estrelados pelo ator. A cada um deles, o dilema tradição vs. inovação foi abordado e até dramatizado dentro das histórias dos longas, que ora afastavam-se das convenções “bondianas”, ora se rendiam e abraçavam algumas delas.
A era Craig, no entanto, não foi perfeita. Os filmes em si foram uma gangorra: Cassino foi excelente, mas seu sucessor 007: Quantum of Solace (2008) foi medíocre. Depois, 007: Operação Skyfall (2012) voltou a elevar o nível, mas seu sucessor, 007 Contra Spectre (2015), deixou a peteca cair de novo. Ainda assim, é preciso ressaltar o quanto foi corajosa a decisão de fazer um reboot da série com Craig, o quão marcante foi mostrar um Bond mais humano, que sangrava, sofria e, às vezes, chorava. Essa mudança não precisava ter ocorrido: afinal, mesmo mostrando carros invisíveis e tramas sem pé nem cabeça nos filmes imediatamente anteriores a Cassino, a franquia estava se dando muito bem nas bilheterias. A mudança foi motivada mais pela parte criativa do que pela financeira e na indústria nem sempre é a criatividade que move as coisas.
Agora, a era Daniel Craig chega ao fim com 007: Sem Tempo para Morrer e, felizmente, é bom constatar que a gangorra subiu novamente. Esse é um Bond dos bons, com seus problemas, claro, mas o longa dirigido por Cary Joji Fukunaga – da primeira temporada de True Detective (2014) – satisfaz como entretenimento e fornece uma despedida digna para o astro que deixou sua marca na saga do maior agente secreto da história do cinema.
FILME MAIS RELAXADO
Sem Tempo para Morrer retoma do ponto de onde Spectre parou com Bond e Madeleine Swann (Léa Seydoux) partindo na direção do pôr-do-sol. A felicidade do casal, porém, é breve e cinco anos depois o ex-agente é recrutado de volta ao serviço quando uma arma biológica é roubada. O caso, claro, tem ligação com a aventura anterior de Bond e vai fazê-lo se confrontar com um mundo diferente, onde a nova agente 007 é uma mulher negra, Nomi (Lashana Lynch). E Madeleine e o velho inimigo Blofeld (Christoph Waltz) darão as caras novamente, mas o verdadeiro vilão é o misterioso Safin (Rami Malek), que possui uma conexão com o ex-amor do herói.
A maior qualidade de Sem Tempo para Morrer é a de ser um filme mais solto, mais leve, até mesmo imprevisível, ainda mais em comparação com o pesado Spectre. Mesmo sendo o mais longo da franquia – cerca de 2h40 de duração -, ele flui rápido. Há uma leveza na condução da trama, que não tem medo de evitar fazer de um dos vilões, o cientista vivido por David Dencik, um personagem quase fanfarrão. Percebe-se, nessa condução, a mão de Fukunaga e também da co-roteirista Phoebe Waller-Bridge, da série Fleabag, que contribuiu bastante para a história, de acordo com os produtores Barbara Broccoli e Michael G. Wilson, os cuidadores de 007 no cinema desde os anos 1980, praticamente. A direção de Fukunaga é visceral, com muita câmera na mão e intensidade.
Assim, desde o começo o espectador fica com a sensação de não saber o que esperar, por exemplo, quando a canção-tema – insossa – de Billie Eilish demora a entrar. Ou quando a ação se inicia de modo inesperado. Ação, aliás, que Fukunaga e seu pessoal de segunda unidade filmam de modo preciso e exemplar: há até um longo plano-sequência perto do clímax que desperta lembranças daquele outro momento sem cortes do quarto episódio de True Detective. As surpresas se estendem até aos personagens e, claro, à trama: Ana de Armas, por exemplo, quase rouba o filme com a sua pequena participação na sequência em Cuba; e a forma como a história se livra de um grupo de antagonistas para introduzir a ameaça principal de Safin também é interessante.
A história, claro, é meio maluca e não faz muito sentido do ponto de vista científico – é um filme do James Bond, afinal. Mas até no resgate dessas inverossimilhanças, Sem Tempo para Morrer funciona melhor que Spectre, por exemplo. E essa estrutura e o tom mais leve ajudam bastante nesse quesito.
CRAIG E O BOND SERIALIZADO
Craig também demonstra estar relaxado e se divertindo a valer. De todos os filmes que fez, é neste que o vemos mais à vontade no papel, como também aconteceu com alguns dos seus antecessores, como Sean Connery e Roger Moore.
O filme exige dele, dramaticamente – o subtexto é o personagem aprendendo a deixar o passado para trás, definitivamente, e o seu maior erro na trama é justo não fazer isso quando tem a chance. Mas é nas cenas mais soltas, mais bem humoradas, que se percebe que Craig não foi ator de uma nota só como Bond.
É um filme ótimo até perto do seu final, quando começa a dar umas derrapadas. Mas no fim das contas, a culpa nem é tanto de Sem Tempo para Morrer, mas sim de outra inovação que a era Craig trouxe: seus filmes contaram uma história contínua, serializada, ao contrário dos longas isolados de James Bond que se costumava ter no passado.
O problema é que essa característica não foi tão bem construída. A cena entre Bond e Blofeld, por exemplo, não tem impacto justamente porque Spectre não conseguiu construí-lo como um megavilão. A propósito dos bandidos, aliás, tanto Safin, o personagem, quanto Malek, o ator, são bem fracos neste filme.
E o desfecho dele não consegue ser tão emocional, justamente por estar construído sobre o alicerce frágil do anterior. Por mais que os produtores achem o contrário, não sentimos de maneira tão forte o amor entre Bond e Madeleine porque a relação entre eles foi construída de maneira muito rasa em Spectre. Apesar de todos os esforços de Craig, Seydoux – que não têm tanta química – e Fukunaga, o final tenta ser emotivo, mas deixa a sensação de que faltou algo, apesar da tentativa de inovar novamente dentro da franquia.
DESPEDIDA DIGNA
Mesmo assim, Daniel Craig consegue um encerramento emotivo e uma despedida, coisa que nenhum dos Bonds anteriores teve. Talvez no futuro nos lembremos da era Craig dentro da franquia 007 como representando o eterno embate entre tradição e inovação. Às vezes a inovação compensou, às vezes pareceu que o jeito tradicional era melhor e os produtores não o seguiram.
Em todo caso, houve risco, a sensação de tudo ou nada a cada filme, o “Everything or Nothing” que compõem a sigla EON, o nome da produtora que concebe e lança esses filmes desde 1962, e isso merece ser respeitado numa era em que o cinema comercial se mostra cada vez mais avesso a arriscar. Daniel Craig se vai, mas uma coisa é certa: James Bond voltará. Como será esse retorno? Tradicional ou inovador? O tempo dirá.