Historicamente as mulheres são subjugadas, diminuídas e subordinadas frente à figura masculina. Ser mulher é cumprir com os fundamentos pré-estabelecidos por uma sociedade patriarcal. Pois o homem é o dominador e detém o poder. Parece algo de séculos passados, mas ainda hoje, século XXI em 2022, ouvimos e assistimos diariamente os corpos de mulheres vítimas desse poder masculino.

“A Noite do Fogo”, novo título da Netflix baseado no livro “Reze Pelas Mulheres Roubadas” de Jennifer Clement, é um vulcão em erupção silencioso acerca da condição da mulher em um mundo contemporâneo, ainda que se viva em um remoto vilarejo no alto da montanha em algum lugar do México, e como a luta pela sobrevivência é muito além do ato em si.

A cena de abertura já entrega: duas mãos cavando um buraco. A moça mais velha pede que a mais nova entre nesse buraco; ela obedece de imediato. Por sua expressão assustada, sabemos que não há resquício algum de uma brincadeira infantojuvenil. Ao longo da película compreendemos que esse buraco é mais um ato de resistência de sobrevivência e a dupla em questão é mãe e filha.

Neste vilarejo, representado pela figura das matriarcas, já que os homens trabalham afastados ou estão tentando a sorte no EUA, meninas somem. Famílias inteiras somem sem deixar vestígio. Todas vivem em clima de tensão, pois há um clima de terror iminente com os desmandos dos cartéis. Nem o exército presente é capaz de minar o poder desses homens que pouco aparecem, mas cuja presença, representada por carros blindados, botas, chapéus, causa espanto.

LÚDICO COMO VÁLVULA DE ESCAPE AO MEDO

A diretora Tatiana Huezo, escancara uma dor aguda, estridente, porém, silenciosa com muito afinco e cuidado. Afinal, “A Noite do Fogo” é sob a ótica de crianças, meninas na sua primeira infância e na passagem de tempo, início da adolescência.

Ela escancara a violência e o perigo de ser mulher. Suas existências são negadas, a ponto das meninas cortarem os cabelos curtos e usarem roupas largas, como meninos, para não serem observadas e levadas pelos traficantes para um destino insólito e previsível. É uma dor em existir e resistir na luta pelo direito de ser mulher, mas não poder ser. Não há escolha para sua descoberta, pois o medo constante as invalida.

Nesse ínterim, Huezo usa do lúdico como válvula de escape dessas meninas. Há um elo, uma conexão entre as seis protagonistas (três na fase infantil e três na pré-adolescência). Uma existe pela outra. Pois, embora o patriarcado e lado mais nocivo do homem se manifeste aqui, essas meninas e as demais mulheres sabem que só podem contar umas com as outras, seus corpos e suas vidas dependem disso.

“A Noite do Fogo” é um filme calmo em sua narrativa, mas estridente em uma angústia crescente ao longo dos pouco mais de 100 minutos. É triste pensar que meninas devam se comportar desse jeito para não serem iscas de traficantes. É triste pensar que se possa viver no medo, na represália, na condição de prisioneiro em sua própria casa/comunidade. E sabemos que esse poder onipresente masculino ainda é muito forte. No Brasil, nas favelas e comunidades carentes não é diferente a condição da menina/moça/mulher frente aos homens ditos poderosos. É vil, doloroso e somente uma força poderosa como da mulher para suportar tamanha dor.

E a cena final?

Reflexões para além filme.

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