Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas – admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para o contexto cinematográfico. 

Lavoura Arcaica é um bom exemplo desta equação: um filme que não trai a essência do livro de Raduan Nassar e o intercala com um visual belíssimo na composição dos planos, cenários e olhares. Este revisionismo sofisticado, se adequa perfeitamente para que ele se torne a escolha ideal para dar vida ao denso (e complexo) livro de Clarice Lispector, “A Paixão Segundo G.H”, obra que é a síntese do âmago imaginário feminino da sua escritora e uma espécie de versão nacional de “A Metamorfose”, de Franz Kafka. 

No material de origem, G.H (vivida por uma Maria Fernanda Cândido de forma impetuosa) se encontra sozinha no seu enorme apartamento no Rio de Janeiro depois de demitir a empregada. Enquanto enfrenta uma crise existencial, ela tem um encontro visceral com o cadáver de uma barata no quarto e que vai ajudá-la a confrontar os conflitos na esfera pessoal. 

Encantamento visual para dar formato a obra

Não vou negar que antes do filme iniciar algumas inquietações percorreram os meus pensamentos: como transpor para um longa-metragem de duas horas, os densos monólogos interiores do texto lispectiano, constituído por um único personagem e cenário e que conta como estopim emocional, a morte de um inseto? 

O fato de Luiz Fernando Carvalho ser um autor que procura por meio das imagens cinematográficas realizar a investigação íntima dos protagonistas dos seus filmes para assim traduzir o espírito das obras que adapta, permite que ele dê corpo às angústias existenciais da jornada subjetiva de G.H por meio de cenas de imensa força poética.

Neste aspecto, o trabalho é bastante hábil em transformar o embate emocional da narradora protagonista em torno dos seus dilemas em uma linguagem visual que ultrapassa os limites da expressão verbal. Nota-se que as emoções coléricas da protagonista ganham formas complexas como representações fantasmagóricas distorcidas de uma individualidade assombrada pela dor, ressentimento e medo. O cenário do apartamento reforça isso, pois se torna um labirinto espectral que metaforiza todos estes sentimentos reprimidos.

É uma experiência cinematográfica que mantém a narrativa claustrofóbica de Clarice inserida dentro do texto denso, mas que busca a linguagem visual singular do seu realizador. Luiz Fernando Carvalho mostra a habilidade em dar um aspecto humano ao pensamento imagético e sublinhar o que é abstrato no texto hermenêutico de Clarice para repaginá-lo no campo concreto daquilo que vemos e sentimos da sua discussão nas imagens. 

Aqui vale ressaltar, que o trabalho do diretor é regido muito bem pela fotografia de Paulo Marconi e Miqueias Lino assim como da direção de arte de Mariana Villas-Boas que incrementam uma beleza alusiva e expressiva ao universo intimista da escritora, juntando o contexto literário para aproximá-lo de algo mais cinematográfico. Inclusive, a trilha sonora intrusiva traz um climão gostoso de horror psicológico, que juntamente com as imagens inquietantes, flerta abertamente com a encenação ficcional polanskiana de “Repulsa ao Sexo” e “O Inquilino”. 

Divagações interessantes, mas cansativas

Se o cerne audiovisual é a equação central que move “A Paixão Segundo G.H” a encontrar a melhor dinâmica como cinema, é nas divagações que ele se propõe que mais gera distanciamento. Valorizo a sua abordagem de pensar o cinema como união das artes por meio das escolhas imagéticas e sonoras para dar forma ao aspecto literário. 

Gosto das reflexões que Carvalho realiza da obra de Clarice ao mostrar através da relação de G.H com a barata, o horror dela diante do mundo, reflexo de uma sociedade de preconceitos e desigualdades sociais, que discrimina as pessoas, além de enfatizar a via-crúcis existencial (“Essa coisa sobrenatural que é viver”) da inquietude humana para discorrer sobre Deus, arte, linguagem e culpa. 

O próprio subtexto lispectiano sobre perda da identidade frente a um meio social que aprisiona o feminino pelas convenções sociais também está muito em sintonia com as explanações do filme e que retratam a força da escritora em explorar as metamorfoses kafkanianas do lado sombrio da subjetividade humana como ponte de conexão para trajetória de autodescoberta de quem realmente somos. 

Uma pena que todas estas questões se esvaziam ao se manterem muito fiel ao original apresentado em tela, incapaz de alterar uma linha do que foi escrito. Esse respeito em demasia pelo livro apresenta uma veneração quase religiosa a uma santidade que não pode ser questionada. Logo se a sensorialidade imagética é um acerto em compor a cena cinematográfica para dar novas dimensões ao material, o texto demasiadamente teatral depõe contra pelo respeito excessivo a Lispector, o que não permite transgredir ou penetrar no universo literário da escritora, fazendo com que as mais de duas horas de projeção sejam difíceis de serem assimiladas.  

Na verdade, toda prosa poética verborrágica da obra literária transportada para o filme não funciona: é tudo muito rápido para o espectador digerir e, na minha concepção, as palavras de Clarice foram feitas para serem apreciadas com um intervalo de tempo maior, enquanto em um longa de duas horas isso se torna maçante pelo fato da audiência nem absorver o que está sendo falado pela dinâmica acelerada, onde até mesmo as palavras perdem o seu real significado. 

Entre a ambição e pretensão

Difícil não pensar nestas duas palavras quando os créditos de “A Paixão Segundo G.H” sobem a tela. O longa acaba por transformar sua ambição de adaptar literalmente o texto homônimo de Clarice numa pretensão artística grandiloquente. 

A realidade é que, depois da sua meia hora inicial, ele se torna uma espécie de audiobook genérico com frases de autoajuda que não potencializam e sim simplificam as discussões. O próprio cenário do apartamento é esquecido dentro da sua proposta e a obra entra em um ciclo sem fim no seu debate hermenêutico extravagante em torno da sua simbologia, que por sua vez, é regurgitada incessantemente. Todas as sugestões alegóricas são mal desenvolvidas ou mal resolvidas, o que só reforça o tom pretensioso do trabalho. 

Em outras palavras, “A Paixão Segundo G.H” cede à possibilidade mais fácil, de expressar a dramaticidade através de um forte histrionismo (e gritos) proferido pela protagonista, recitando falas e diálogos ao invés de encená-los. Portanto, é cansativo acompanhar a sua outra metade com planos fechados no rosto de Maria Cândido lendo exatamente os trechos do livro. 

Falando na atriz, a entrega é comovente e permite uma performance delicada nos momentos em que a narrativa se perde na sua pretensão. Ela consegue reproduzir a figura de Clarice até na forma como ela brincava com os dedos e entrega uma G.H genuína na busca de se libertar do peso simbólico que carrega.

No geral, “A Paixão Segundo G.H” entre as reverências a obra de Clarice Lispector sobre uma protagonista que se encontra “a sós” com suas emoções e pensamentos angustiantes, acerta na composição estética do universo da escritora como uma nova possibilidade de sensações a partir das sugestões de imagens abstratas que funcionam muito bem no ato inicial do trabalho. Já na sua exploração experimental o filme é traído pela sua própria linguagem, já que se torna uma reprodução de palavra por palavra do livro, sem qualquer soma cinematográfica, apenas subtração.

Se Carvalho em “Lavoura Arcaica” soube utilizar a criatividade para misturar os recursos cinematográficos e contar a história de um livro que parecia intransponível para tela de cinema, aqui ele derrapa por optar em não correr riscos e gerar uma obra emocionalmente vazia, o que não deixa de ser um enorme pecado em se tratando de Clarice. A máxima do futebol – jogo é jogo e treino é treino – é aplicado aqui também, mesmo não sendo uma regra obrigatória de fato: livro é livro, filme é filme. Nem sempre um texto poético será bem traduzido para imagem em movimento.