A lápide de um dos meus roteiristas/diretores favoritos, Billy Wilder, diz, em menção a um de seus maiores clássicos: “Eu sou um escritor, mas ninguém é perfeito”. Em “Afire”, Christian Petzold parece exercitar essa frase em sua máxima potência. Ao explorar as imperfeições de um protagonista que parece implorar para que nós o detestemos (e o consegue), ele transforma sua obra em espelho.   

No filme, Leon (Thomas Schubert) é um escritor em crise criativa que se refugia em uma casa de veraneio com o amigo, Felix. O que, na ideia dele, seria um momento de paz para escrever, é tudo, menos isso: a presença inesperada de Nadja (Paula Beer) e todos os atrativos da praia irritam em demasiado o personagem.  

Um dos mestres do melodrama moderno, Petzold faz dos espaços da casa e da natureza ambientes de pura catarse emocional. Mesmo com a ameaça dos incêndios florestais, os medos de Leon são abstratos, mas não deixam de pairar ao seu redor: os prazos, a falta de criatividade, e, principalmente, o fato de que sua obra pode não ser tão especial assim.   

REFLETINDO UM POUCO DE NÓS 

O caos tão bem-vindo à criatividade não soa assim para Leon. Com isso, Nadja acaba sendo uma união entre a calma que ele tanto almeja e a ebulição da vida ao redor.   

Leon nunca vive totalmente, é incapaz sequer de usar sua habilidade observadora para entender a beleza no ato de fotografar estranhos olhando o mar. Tudo é banal e pequeno demais para ele. E, para pessoas assim, quando o chacoalhão vem, ele vem mais forte que a mais forte das ondas. Nesse sentido, a personagem de Paula Beer é a visão de algo que pode estar ao alcance dos dedos ou separada por uma janela. O mundo que Leon nunca consegue acessar porque lhe sobra ego.   

É nesse confronto interno que Petzold cria um personagem riquíssimo. Chato? Demais. Mas complexo, e que confronta as nossas piores características em um reflexo do que a arte bem-feita tem o poder de ser. Cada corte que Leon recebe vem com um grito de “bem-feito” vindo do espectador, mas sem estar desprovido de um “epa, eu já fiz isso ou já me deparei com alguém assim”.   

O processo criativo pode ser desesperador e caótico. Essa que vos escreve, por exemplo, passou duas semanas começando e apagando este texto sobre “Afire”. Nada ficava honesto o suficiente de uma forma que pudesse fazer justiça a uma obra tão direta. Até que, ao ir na contramão do protagonista e olhar o mundo ao meu redor, resolvi fazer o movimento contrário e falar do que me une a um personagem que consegue ser tão desprezível. Se fiz justiça a “Afire”? Provavelmente não. Mas honrei tudo o que senti durante o filme e, principalmente, depois dele.