Lucille Ball quer um lar. E ele definitivamente não vai ser construído em um cinema cerebral demais como o de Aaron Sorkin. “Apresentando os Ricardos”, nova investida dele na direção, é um retrato sem o brilho que fez de Ball a estrela mais assistida da TV dos Estados Unidos na década de 1950. É um filme tão oco e sem alma que quer abraçar o mundo, mas esquece de simplesmente contar uma história. 

A confusão já se faz presente nos primeiros momentos da produção. Sorkin aposta na antecipação e em nos fazer ouvir antes de nos fazer ver Lucille (Nicole Kidman) e Desi Arnaz (Javier Bardem), seu marido e parceiro de cena. Os créditos iniciais do filme, anunciados com uma sóbria tela preta, são acompanhados por aplausos e a famosa risada que virou a marca das sitcoms multicâmera por décadas. 

O que se vê é o estilo formal do roteirista e diretor, com a simulação de um documentário no melhor estilo E! True Hollywood Story, lembrando dos bastidores da série “I Love Lucy”. A sitcom vai ser nossa guia nessa história, e os entrevistados, já idosos e longe da glória de outrora, já anunciam: a semana que vamos acompanhar na trama foi assustadora e decisiva para a continuidade do programa. Ao mesmo tempo, os mais desavisados ganham uma introdução do que é aquela série que deixava os norte-americanos todos em casa, com direito até a queda no consumo de água durante a meia hora em que Lucy e Ricky Ricardo se envolviam nas mais diversas situações. E aí, admito que é bem divertido ver, ao longo das mais de duas horas de filme, Kidman refazendo as cenas clássicas da série, como a das uvas na Itália, icônica a ponto de aparecer em filmes como Uma Linda Mulher (lembram da Vivian de Julia Roberts se abrindo de rir enquanto assistia TV?). 

CAOS AO ABRAÇAR O MUNDO 

É até difícil tentar um resumo da trama porque ela é caótica, e, ao mesmo tempo, consegue navegar no marasmo. A antecipação para que finalmente vejamos Kidman e Bardem como Arnaz e Ball é insistente, e isso se traduz também para os outros personagens da trama. O problema é que Sorkin simplesmente não transpõe a aura que os dois tinham, de ser “o casal da América” (ainda que essa América quadrada pudesse rejeitar o fato de Lucille/Lucy ser casada com um não americano – e latino, ainda por cima). Os dois chegam no set para iniciar a leitura do roteiro do episódio da semana, mas, se há qualquer tentativa de que essa presença se faça algo digno de antecipação, por aqui passou completamente batido. 

E, para continuar nesse papo de aura, vamos a uma que cerca Lucille naquela semana. Quatro palavras que, naquela época, eram sinônimo de exílio e fim de carreira seriam justamente o que assombra esses dias tão alardeados pelo filme. “Lucille Ball é comunista”, anuncia uma rádio e depois a manchete de um jornal. Porém, uma rápida explicação dela faz com que o problema seja esquecido e suplantado por outros, para depois ser ressuscitado como se fosse o grande pesadelo que poderia ser de fato para uma estrela que apelava para essa América conservadora. Nada que um telefonema de J. Edgar Hoover não possa dar um jeito, porque Sorkin simplesmente não poderia perder a oportunidade de fazer uma menção política quase que aleatória naquele contexto. 

Não que isso preocupe muito a estrela. Lucille é retratada como uma estrela perfeccionista e que precisa ser uma operária da comédia, com visão do que o roteiro pode virar, mas também capaz de convocar um ensaio surpresa às 2 horas da manhã, às vésperas da gravação do episódio, para que consiga pegar o ritmo. “Eu vou ser engraçada até sexta-feira”, diz a personagem em algum momento. 

O problema é que nós estamos cansados nessa espera. Tão cansados quanto o diretor, que reclama de estarem presos ainda no início do roteiro durante os ensaios. E, se Sorkin queria que alguma sensação ali fosse palpável, essa impaciência foi a que realmente conseguiu ser transmitida, para o bem ou para o mal. Porém, vale destacar que Nicole Kidman correu contra toda a corrente de desconfiança que lhe cercou quando seu nome foi anunciado para o projeto. A atriz se sai muito bem com um registro mais baixo em sua voz e, nesse caldeirão todo, é quem consegue salvar a obra de ser um desastre total, mas por muito pouco. 

Em contrapartida, Desi é relegado ao posto de latin lover sem tanta agência assim, e que está dando mais atenção às notícias sobre a filiação da esposa ao partido comunista e as implicações disso do que ela. Enquanto está às voltas com um roteiro com o qual não consegue trabalhar e as questões com os congressistas que investigam os comunistas e supostos comunistas, Lucille parece estar mais preocupada com uma foto antiga que coloca o marido como um infiel “que não mais a ama”. 

Com isso, ela é colocada na posição de estrela que precisa lutar contra a emasculação de Desi perante os engravatados que mandavam e desmandavam na série. Afinal, “I Love Lucy” é um trabalho deles, é o resultado da parceria de Desilu, produtora fundada pelos dois, décadas antes da junção dos nomes de casais famosos se tornarem quase que uma fixação dos tabloides (Brangelina, Bennifer, vocês sabem…). Junto a tudo isso, ainda há tempo para colocar a gravidez do segundo filho deles, que provocou uma revolução na TV norte-americana simplesmente pelo fato de ser incorporada à história e, assim, deixar implícita a vida sexual tanto de Ricky e Lucy, quanto de Desi e Lucille. 

TIRO QUE SAIU PELA CULATRA 

Esse emaranhado de coisas se traduz também na estrutura do filme. Além do documentário lembrando a tal semana terrível, Sorkin mistura os registros dos ensaios e gravação em uma espécie de aula de sitcom para iniciantes (sem esquecer, claro de letreiros didáticos dizendo o dia da semana e o que ele significa na rotina desse tipo de produção) com flashbacks que parecem mais brigar com a história principal do que completá-la. É até engraçado lembrar que isso poderia servir para descrever “Mank”, filme de David Fincher, justamente o diretor que um dia conseguiu transformar em cinema os diálogos frenéticos de Sorkin. 

Mas, se é para sermos justos, vamos seguir na filmografia (enquanto diretor) do homem que levou “Apresentando os Ricardos” para a tela, já que esse novo trabalho guarda algumas correlações com o filme anterior de Sorkin. Assim como “Os 7 de Chicago”, qualquer tentativa de evocar o lado mais sensível do espectador é completamente frustrada por uma história que não consegue entender exatamente para onde quer ir, e muito menos de onde vem. Se os momentos de maior heroísmo do filme de 2020 são escritos com um peso de quem parece querer mostrar a todo momento o quanto é politizado, em “Apresentando os Ricardos” somos confrontados com um drama que se torna comédia involuntária, principalmente quando tenta, por mais de uma vez, escancarar a ignorância de Hollywood sobre “latinos, hispânicos, brasileiros, turcos…” – e aqui estou praticamente parafraseando uma das personagens, mas poderia muito bem-estar citando a ignorância do próprio Sorkin em uma entrevista recente ao The Hollywood Reporter. 

Cenas como essa mostram que “Apresentando os Ricardos” é um tiro que saiu pela culatra. Não sabe se quer ser uma homenagem à Hollywood clássica com referências que, além das cenas da série, se resumem a citações seguidas de nomes de atrizes contemporâneas a Lucille. Também não sabe se quer criticar o american way of life que elevou a estrela a um lugar quase que sacro na cultura pop dos EUA. No fim das contas, ela segue sem um filme à sua altura e, mais que isso, sem um lar. 

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