Quando “House of Cards” estreou na Netflix em fevereiro de 2013 chocou uma (ingênua) parcela do público sobre como o coração da política norte-americana poderia ser tão ardiloso e baixo. Era época de um suposto idealismo democrático com Barack Obama, primeiro presidente negro da história dos EUA. Pouco tempo depois com a chegada inacreditável do outsider Donald Trump e seus retrocessos, a série sobre Frank Underwood se viu superada pela realidade até perder a relevância total após o escândalo envolvendo Kevin Spacey. 

Comédia apocalíptica sobre dois cientistas – Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) – que descobrem um cometa em rota de colisão com a Terra e se deparam com uma presidenta dos EUA negacionista (Meryl Streep) e interesses comerciais acima da vida humana, “Não Olhe Para Cima” sofre do mal-encarado pela pioneira série da Netflix. A sátira proposta pelo diretor/roteirista Adam McKay se utiliza de paralelos claros com os absurdos vistos na pandemia da COVID-19, porém, soa mais do mesmo como crítica ao trafegar quase sempre por caminhos já explorados diariamente na própria mídia e, especialmente, nas redes sociais. 

NÃO TÃO SURREAL 

Se certas piadas simplesmente não decolam como o chefe do Pentágono cobrar por produtos de graça, outras são mais do mesmo como a mídia sensacionalista pouco interessada em dar relevância necessária a assuntos sérios, a política acima do interesse público ou como a espetacularização acaba por ser um caminho para os dois lados do debate científico a ponto de transformar a existência da humanidade em uma disputa de hashtags e virais.   

Somente quando se joga no exagero total ao colocar um cowboy preconceituoso à la Bruce Willis de “Armageddon”, a bizarra canção interpretada por Ariana Grande e a entrevista do astro de Hollywood com o lançamento do novo filme marcado para a data da queda do cometa na Terra que “Não Olhe Para Cima” encontra o tom anárquico dos tempos de “O Âncora”.  

Aqui sim, no terreno do nonsense absoluto, McKay consegue competir com um mundo de Trump sugerindo detergente para tratar Covid, do país mais poderoso do mundo cair diante de um vírus por puro negacionismo, Bolsonaro tirando máscara de criança em aglomeração e das dancinhas de TikTok enquanto o mundo acaba.  

COESÃO DE MCKAY E GRANDE ELENCO 

Na direção, Adam McKay, pelo menos, acerta o tom e faz de “Não Olhe Para Cima” seu trabalho recente mais coeso. Ainda que trabalhe em muitas frentes com excessos de situações e personagens (o que Timothée Chalamet está fazendo ali?), ele consegue manter um ritmo intenso durante as 2h23 de duração do longa sem perder o foco, algo totalmente diferente do que ocorrera no bagunçado “Vice”. A montagem de cortes rápidos e a riqueza de planos são mantidas conferindo a tensão sempre alta como faz com brilhantismo no primeiro encontro entre os cientistas e a presidenta. 

Leonardo DiCaprio, para variar, conduz a trama com a habilidade de sempre ao apresentar todas as nuances de um sujeito problemático e sem confiança dividido entre a responsabilidade da difícil missão de alertar sobre o risco à humanidade e o deslumbramento com a fama repentina. Mais do que a cena para garantir a vaga ao Oscar do discurso final no estúdio de TV, são os olhares angustiados do início do filme os pontos altos da atuação, afinal, transmitem o espírito do que virá adiante.  

Jennifer Lawrence e o duelo com Jonah Hill, Meryl Streep claramente tirando uma onda com seu desafeto Donald Trump, Ariana Grande satirizando a si mesma e Mark Rylance zoando Elon Musk também elevam a comédia para um patamar bem acima da média. 

Fechando no melhor estilo “Doutor Fantástico” a partir de espetaculares efeitos visuais, Adam McKay realiza em “Não Olhe Para Cima” uma análise do quão irracional a humanidade pode ser ao permitir ser governada por fascistas, sociopatas e genocidas, algo agravado quando estamos expostos a um desafio fora do ordinário. Pena que fique em terreno seguro na maior parte de suas críticas sem abraçar o surrealismo totalmente, algo que, infelizmente, a realidade faz sem pestanejar.