O cinema é uma máquina capaz de muitas coisas. Algumas dessas possibilidades são apresentadas e exploradas pela diretora Kaouther Ben Hania em “As Quatro Filhas de Olfa”. O ponto de partida é o desaparecimento de duas meninas, Rahma e Ghofrane, filhas de Olfa. Hania contrata duas atrizes para interpretá-las enquanto uma terceira fica com o papel da matriarca. Já as outras duas filhas, Eya e Tayssir, interpretam a si mesmas.

Confuso? Pense neste documentário como algo próximo a “The Rehearsal”, de Nathan Fielder, e você entenderá do que se trata. A diferença, claro, é que o filme está tratando de uma tragédia, cujas reais dimensões nos serão desveladas gradualmente.

Assim, logo Olfa está dirigindo a atriz que a interpreta enquanto recria a noite de núpcias, por exemplo. O quanto do que vemos é uma ficção envolta nas brumas da memória? O quanto é realidade? Não sabemos e, de todo modo, não importa, porque tudo ajuda a revelar mais sobre aquela figura. E então aprendemos que o cinema é uma máquina de criar memórias.

CINEMA COMO TERAPIA

Logo chega o momento das filhas recriarem a história da família a partir de sua perspectiva. Enquanto discutem a infância, fica claro que o documentário é também a oportunidade de acertar as contas com a mãe, mulher dura e inflexível, apesar de resiliente e destemida. Enquanto memórias traumáticas vêm à tona (deixando até mesmo um dos atores contratados desconfortáveis em uma das encenações), o cinema se mostra uma espécie de dispositivo terapêutico. E também uma arma de retaliação.

O mistério do desaparecimento das filhas de Olfa, descobrimos, está relacionado à história recente da Tunísia, bem como do Oriente Médio como um todo. Entrelaçando a história familiar ao destino de toda uma nação, Ben Hania revela mais uma face da Sétima Arte: mecanismo de rememoração e contestação política.

Há mais a ser revelado. Mas os prazeres dessas descobertas ficam a cargo daqueles que se permitirem explorar as inúmeras fronteiras do cinema com Olfa e sua família.