Existe uma espécie de retrato da monstruosidade no cinema que se reserva ao cotidiano, procurando mostrar de forma corriqueira acontecimentos e personagens extremamente perversos. Ao se tratar de uma animação, o efeito é ainda mais forte.

“Bestia”, curta-metragem de animação chileno, foca sua narrativa em Ingrid Olderöck, agente do serviço de segurança chileno durante a ditadura de Augusto Pinochet. Uma mulher aparentemente simples, solitária, mantendo uma rotina rígida ao lado do cachorro de estimação, que possui uma atuação horrorizante. Ingrid ficou conhecida por torturar suas vítimas a partir de abusos sexuais.

O curta, dirigido por Hugo Covarrubias, mantém desde o início um suspense incômodo, adotando uma trilha sonora extremamente tensa que se contrapõe à iluminação solar, vibrante da fotografia. Essa decisão busca justamente a criação de um clima desagradável para quem assiste de uma superfície límpida com um segredo inquietante.

As personagens possuem poucas expressões e nenhuma fala. Ingrid está sempre carrancuda em tela, independente do que esteja fazendo. Sua rotina se baseia em preparar o café, alguns bolinhos que divide com seu cachorro. Então ela se arruma e sai de casa com o cachorro, dirigindo-se a uma casa aparentemente afável. É lá que Ingrid realiza as sessões de tortura.

DO SUPERFICIAL AO PROFUNDO HORROR

“Bestia” possui uma crescente em sua tensão. O filme evolui o horror aos poucos, calmamente, como um reflexo da personalidade da protagonista. As cenas fogem da rotina de Ingrid apenas para introduzir momentos, surreais, como delírios da mente da personagem.

Embora utilizados para adicionar profundidade ao filme, tais cenas ofuscam o que há de melhor em “Bestia”, o suspense. Não que sejam ruins, mas parecem muito deslocadas do resto da obra, parecendo mais uma fuga do sufoco horrorizante do que realmente uma proposta inovadora para a personagem.

E não há para onde fugir ao se deparar com a história. Ingrid cometeu atos terríveis, retratados com bastante rigor durante a narrativa. Ao apresentar o dia a dia da torturadora de forma enfadonha, ganha-se demais em medo daquela figura. A imagem da mulher, em um primeiro momento um ser inofensivo e afável, vai se transformando. A busca pela animalização de Ingrid, embora óbvia, funciona muito bem, de forma a ressignificar os atos rotineiros da personagem. Sua frieza, a locomovem de mulher solitária para um monstro. Sua relação com o cachorro de estimação, utilizado nas sessões de tortura, a levam de tutora exemplar para terrível carrasco.

“Bestia” retrata com firmeza uma história macabra, difícil de ser digerida, partindo sempre do superficial para o mais profundo horror.

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