O que seria de nós, reles humanos, sem a magia dos encontros e as conexões de alma que nos parecem improváveis? Não há mistério na convivência. Vivemos em sociedade e em coletividade, precisamos uns dos outros, de fato. No entanto, a boa e velha “química” ou, no bom português, “quando o santo bate acontece” exige um pouco do acaso e disposição.

Em “Compartment No. 6”, Laura (Seidi Haarla) é uma jovem estudante de arqueologia que vive um romance com Irina (Dinara Drukarova), uma mulher mais velha e bem relacionada com seus amigos acadêmicos e intelectuais. Não há muita profundidade nessa relação. Aqui, é uma pequena introdução do deslocamento em que a jovem se encontra. Ela está com viagem marcada rumo a Murmansk, onde estão os famosos Petróglifos, em resumo, pinturas rupestres, descobertas nos idos dos anos 1990.

E é nessa longa e fria viagem de trem rumo ao desconhecido, no compartimento n°6, eis o título do filme, que ela conhece o peculiar Lyokha (Yuriy Borisov). Um tipo turrão, intransigente, indecente e indelicado. Ela, introspectiva, sofre por deixar para trás sua paixão. Mas essa convivência muda a vida de ambos.

 SUPERAÇÃO DE BARREIRAS

O interessante de “Compartment No. 6” se dá na questão da complexidade das relações e de como elas podem acontecer de uma maneira torta para tornar-se algo verdadeiro, real. Ao longo do filme, as barreiras impostas se desintegram: ela é lésbica, finlandesa, estudante e em busca de um sonho. Ele é um russo, sem estudo, operário e com maneirismos de um sujeito do gueto. Porém, ambos se encontram neste desencontro da vida quando não há equilíbrio entre o ser e o estar.

A relação dos dois vai para além das barreiras linguísticas, culturais e de gênero. Os dois de alguma forma inexplicável se encontram. Ainda que não haja diálogos profundos sobre passado, presente e futuro. É muito mais sobre a presença física, o suporte que um dá ao outro, mesmo que com certos atritos, pois Laura e Lyokha são bem diferentes.

O filme é baseado na obra de mesmo nome da autora finlandesa Rosa Liksom. O diretor Juho Kuosmanen (“O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki”, 2017), nos entrega uma obra interessante sobre amadurecimento, conexão e companheirismo. Embora a grande atração, aqui, seja a montagem que faz o filme ser mais atraente para quem o assiste, pois há um momento em seu meio que se arrasta. A montagem auxilia na dinâmica em um contexto geral.

ENXERGAR O PRÓXIMO

Outro ponto essencial aqui é a fotografia de Jani-Petteri Passi que se inicia bem escura e, ao longo da película, se torna mais clara. Certamente, uma analogia aos sentimentos reais em que os personagens estão vivendo. A química entre os atores em cena é fantástica; Seidi e Yuriy estão ótimos em cena. A sequência final entre eles indo ao Petróglifos até a derradeira despedida é um belo convite para que possamos ser mais abertos ao acaso e enxergar o outro.

“Compartment No. 6” foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri da última edição do Festival de Cannes. E de Cannes Kuosmanen entende bem, o filme anterior, “Olli Maki” venceu o Grande Prêmio da mostra paralela Un Certain Regard em 2016. E ele está apenas no terceiro filme. Um diretor para ficar de olho.

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