Do diretor e roteirista franco-canadense Éric Gravel, “Contratempos” é um raio de sol em meio a um céu cinza que inunda constantemente os pensamentos das pessoas comuns nesse mundo capitalista. A fábula moral e amorosa se irmana como uma “kindred soul” (alma afim) a um outro filme francófono, “Dois Dias, Uma Noite”, dos irmãos Dardenne. Mesmo que a verve política deste seja mais suave no discurso fílmico, ela está lá, dinamitando relações de trabalho e dilapidando sonhos. 

Uma experiência emotiva que é tanto cinematográfica quanto osmótica – “Contratempos” entrega, subjetivando estar nos calcanhares da personagem mãe e trabalhadora chamada Julie que se desdobra em uma rotina corrida para conquistar uma possibilidade de mudança. Mesmo na França, onde supostamente os abismos sociais são pouco profundos, mesmo para uma pessoa branca, o sistema insiste em negar uma vida menos ordinária. Uma possibilidade de viver sem tanta agonia e prover para si momentos de felicidade.  

E é nessa temática que remexe tanto e reverbera em passagens como a que Julie procura a roupa escondida no lixo do banheiro que Gravel constrói sua história, com a colaboração visceral, doce é apaixonante da espetacular Laure Calamy (da série-hit “Dix Pour Cent”, da Netflix). 

PERRENGUES EM SUCESSÃO

Determinada, malandra, no auge do desespero ou da sede por um recomeço, ela é o sol que ilumina essa jornada um tanto sombria de uma mulher que trabalha como camareira num hotel em Paris, mora no campo com dois filhos pequenos, implora pro ex não atrasar a pensão enquanto batalha por uma nova chance num emprego abaixo de sua capacidade intelectual mas que vai lhe permitir recuperar o respeito por si.  

Se fosse traduzir por meio de uma expressão o que é a maratona de situações entre tentativa e erro em meio a uma crise no transporte público da capital francesa, que deixa Julie sem conseguir trem ou metrô pra se deslocar entre casa, cidade de trabalho e local onde quer reiniciar a carreira de economista – seria “passadora de perrengue”. 

Heróica em sua pretensão, o alicerce de “Contratempos” é uma batalhadora, falha, cativante e também irritante. Gravel contrasta bem os momentos dramáticos entre os altos e baixos na sucessão de poucas semanas na rotina de Julie, ao longo do processo seletivo que participa tirando vários coelhos da cartola até o desfecho aparentemente anti climático. Gravel e Calamy tiram o ar e bombeiam todo o sangue de volta para o coração, oxigenando uma tradição do cinema de temática social, mundana e que triunfa na resiliência. 

“Contratempos” saiu com o prêmio de direção e com a Copa Volpi de melhor Atriz para Calamy no festival de Veneza. 

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