Duas palavras sobrepostas conseguem sintetizar “Tudo em Todo Lado ao Mesmo Tempo”: contemporaneidade e insanidade. Daniel Kwan e Daniel Scheinert (criadores de “Um cadáver para sobreviver”), responsáveis pela direção e o roteiro, conseguem fazer tudo que a Marvel prometeu nas suas produções sobre o multiverso e entregar muito mais. O roteiro criativo, as discussões contemporâneas e o entrosamento entre atores são três fatores predominantes no filme.

É difícil conseguir pensar em uma sinopse, mas basicamente estamos diante de uma família chinesa, que próximo a comemoração do ano novo, precisa lidar com problemas bizarros oriundos de uma fenda espaço-temporal. Acredito que essa descrição ainda não faça jus ao apresentado, mas nos norteia quanto às questões discutidas na produção.

Uma exposição da sociedade contemporânea

Nesse sentido, o filme dos Daniels é lúdico para mostrar os comportamentos vigentes da sociedade contemporânea. São várias as pautas rotineiras do Twitter que encontram abrigo no roteiro e nos fazem refletir sobre a forma como enxergamos e lidamos com as adversidades e as pessoas que convivem conosco. “Tudo em todo lado ao mesmo tempo” consegue ser o puro suco do que somos e vivemos.

O tédio que uma das versões de Joy (Stephanie Hsu) esboça e a confusão na dinâmica diária de Evellyn (Michelle Yeoh) são apenas alguns exemplos de como a narrativa consegue transpor para a tela a contemporaneidade e causar um impacto forte no espectador. As pressões vivenciadas com a chegada do pai idoso vindo da China, a aceitação da orientação sexual da filha, o pedido do divórcio e a busca pela regularização fiscal de sua lavandeira são questões suficientes para gerar identificação do público e uma segmentação na mente da protagonista (Yeoh, excelente), que resulta na nossa entrada no multiverso. O roteiro nos entrega um primeiro momento tangível, para poder nos sacudir e imergir na loucura que o cotidiano pode promover.

Nesse ínterim, delírio, multiverso e contemporaneidade se encontram na forma como a personagem central se enxerga: o suprassumo do fracasso. Ao olhar para suas outras vidas e a que segue na linha do tempo corrente, a percepção sobre si e as interrupções que a formaram, lembrou bastante o discurso de apresentação de Linn da Quebrada no BBB: “sou o fracasso. O fracasso de tudo que queriam que eu fosse”. É preciso destacar, neste ponto, a sagacidade dos diretores em trazer uma característica tão pontuada entre os jovens, diante da crise sanitária e econômica que passamos, para ser o ponto de virada da protagonista.

O multiverso da loucura

A discussão levantada pelo multiverso dos Daniels é um complemento a noção do tema proposta tanto em “Loki” quanto em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura“. Os roteiristas, contudo, não pensam nele como algo lógico, mas imersivo. Assim, a resolução de conflitos não tem o foco no espaço, como é o debate nas produções da Marvel que focam em resolver o que ocorre no presente, mas compreender como se chegou até ali, sem importar-se com passado, presente ou futuro, como se tudo ocorresse ao mesmo tempo (hello, Dark!), em outras palavras, temos uma discussão mais temporal do que espacial.

Duas escolhas fortalecem o multiverso proposto na rotina de Evellyn: o símbolo que o sintetiza e o passeio por gêneros cinematográficos. No primeiro, a filosofia niilista de Joy nos oferece uma visão condescendente sobre a vida e ao mesmo tempo levanta discussões sobre nossas próprias decisões. Quanto ao segundo ponto, fortalece a confiança que os diretores depõem sobre o conceito que é tratado e a maneira imaterial e fantasiosa com que o abordam.

Há uma mistura de linguagem e gêneros muito bem pontuadas e carregadas pela marca autoral dos diretores, que permite brincarem com os paralelismos e suas possibilidades sem fugir das discussões decorrentes. Por isso, em muitos momentos o filme se parecerá um drama familiar em meio a uma ficção científica; o que o torna atrativo tendo em vista as opções que este último confere ao cinema. A montagem frenética de Paul Rogers e os efeitos visuais são determinantes para que haja uma confluência e convergência interessante e carregada de impacto.

“Tudo em todo lado ao mesmo tempo” é um filme insano. Os Daniels conseguem alçar um ponto de criação que beira a loucura, mas entrega tudo e muito mais sobre um assunto que ainda tem bastante a oferecer ao cinema pelos próximos anos. De minha parte, gosto de vê-lo sendo tratado fora dos filmes de super-heróis, por isso, o filme protagonizado por Michelle Yeoh entra para o panteão do multiverso ao lado de “Dark”, as histórias de Makoto Shinkai e Donnie Darko.

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