Se hoje em dia a cena mais famosa do primeiro Homem-Aranha é do beijo entre o herói e sua amada Mary-Jane, a cena mais famosa de Homem-Aranha 3 é… a dancinha do Peter Parker malvado e com penteadinho estilo emo, achando que está abafando, em uma referência ao clássico Os Embalos de Sábado à Noite (1977). Mencionar essa cena hoje é garantia de despertar risadas e caretas de escárnio entre o público. Foi até satirizada na animação Homem-Aranha no Aranhaverso (2018). É o momento que, para muitos, sintetiza o quanto este terceiro filme do herói aracnídeo é ruim.

Mas aí é que está… Eu adoro essa cena, porque ela está 100% de acordo com o personagem, segundo a visão do diretor Sam Raimi. O Peter, vivido por Tobey Maguire, é um nerdzão, alguém que simplesmente não sabe bancar o machão sedutor irresistível e babaca. Como muitos nerds da vida real, ele se acha um herói em seu interior, mas se tivesse que agir realmente como um sujeito casca grossa, iria acabar fazendo papel de palhaço. E como muitos nerds não gostam da cena, presume-se que a caricatura de Raimi e Maguire acertou bem no alvo. Eu acho a cena divertidíssima, uma das melhores do longa.

Pena que, poucos minutos depois, o próprio filme a diminui incluindo OUTRA CENA do Peter dançando em um bar e até tocando piano. Não me esqueço da minha mãe, vendo esse filme há anos, dizendo nesse momento: “Virou um musical, agora?”. Esse é o problema de Homem-Aranha 3: é um filme excessivo em tudo. Tem muita coisa. Até as tradicionais cenas engraçadas com Bruce Campbell e J K. Simmons como Jonah Jameson se estendem demais e perdem a graça. A narrativa parece descontrolada. E de fato, quando se pesquisa um pouco sobre o desenvolvimento do projeto, nota-se que foi um caso claro de muitos cozinheiros metendo o bedelho na cozinha.

A DERROTA DE RAIMI E A SENSAÇÃO DE CANSAÇO

Ora, depois dos dois filmes anteriores que foram bem recebidos pela crítica e arrasaram nas bilheterias, veio a pressão para superá-los, para fazer algo ainda mais grandioso. Raimi queria dois vilões clássicos das HQs do Aranha na trama: o Homem Areia e o novo Duende, com o Harry Osborn (James Franco) assumindo o legado maníaco do seu pai. Mas o produtor Avi Arad forçou a inclusão do vilão Venom no roteiro. Arad achava que, por ser um membro mais recente da galeria de inimigos do herói – ele surgiu nos anos 1980 – e por ser um personagem popular nas HQs e desenhos animados, o Venom iria ter mais apelo junto à molecada. Raimi e Arad brigaram feio, mas, no fim, o diretor cedeu. E isso resultou na maçaroca que é o roteiro do terceiro filme.

Afinal, vejamos: has HQs, o Venom é uma forma de vida simbiótica e alienígena que “gruda” no corpo do Aranha na saga Guerras Secretas e se transforma no uniforme negro do herói. No filme, a solução encontrada pelos roteiristas – Sam e seu irmão Ivan, e Alvin Sargent – é trazer a gosma alienígena em um meteorito que cai do espaço bem ao lado de Peter e Mary Jane (Kirsten Dunst).  Depois, Flint Marko (Thomas Haden Church), o ladrão que vai se tornar o Homem Areia, cai justamente dentro do buraco onde está rolando a experiência científica que vai transformá-lo. O fotógrafo rival do Peter, Eddie Brock (Topher Grace), calha de estar justo onde o Aranha está para tirar fotos e, depois, se vê na santa igreja da conveniência bem a tempo para ser controlado pela gosma. É muita coincidência para um roteiro só. É como se em toda Nova York vivesse só meia dúzia de pessoas, que ficam topando umas com as outras quando a trama exige.

Percebe-se claramente o momento em que os roteiristas jogaram as mãos para o céu e gritaram “ah, dane-se!”: é quando eles resolvem o arco do Harry malvado graças à esquisita intervenção do mordomo da mansão Osborn, um personagem que apareceu por 10 segundos no primeiro filme e 20 no começo deste terceiro. Realmente, em termos de roteirização, Homem-Aranha 3 é um troço muito complicado. Até a atuação do velhinho John Paxton na cena é esquisita, deixando a impressão de estar com dificuldade de lembrar suas falas.

E ainda estão no filme a Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard), que surge sempre que a história precisa de um pouquinho de conflito, e a crise da MJ – a coitada é muito maltratada em “Homem-Aranha 3” e não recebe apoio do Peter. E outro pecado gigantesco aqui é o de mexer nos próprios fundamentos da trilogia, ou seja, a morte do tio Ben. Até dá para entender porque se tentou fazer de Marko o assassino – mais sobre isso à frente – porém, do jeito que foi estabelecido, só parece mais uma coincidência em um roteiro atolado delas.

Sim, Homem-Aranha 3 tem uma porção de problemas e não dá para colocar todos só na conta dos produtores. É visível que, ao perder a batalha com Arad e o estúdio, Raimi meio que perdeu também seu interesse no filme. Sua direção aqui é mais burocrática, e seu trabalho no roteiro, como já visto, deixou a desejar. Maguire, Dunst e Franco também se mostram desinteressados aqui. Já se sente no filme uma sensação de cansaço.

COERÊNCIA NO RUMO DO PROTAGONISTA

Mesmo assim… Ainda há momentos e qualidades dignas de nota nele.  Como é um diretor de terror na alma, Raimi e a equipe dos efeitos criam cenas espetaculares como o nascimento do Homem Areia, um espírito sem corpo que vai aos poucos se reconstituindo com os grãos; ou a bizarra visão do monstro simbionte no final, um momento e uma criatura que podem ter deixado algumas crianças com dificuldades para dormir após ver o filme – o som que ele emite também é assustador. Além disso, não se pode também criticar muito a parte técnica de “Homem-Aranha 3”: visualmente, ele é espetacular por mais que alguns dos efeitos hoje pareçam um pouco primários, como os dublês digitais na primeira luta entre Peter e Harry.

Mas acima disso, sente-se que o terceiro filme é uma progressão natural do dilema moral do segundo. No anterior, Peter só se ferrava; quando o terceiro começa, o jogo virou. Ele agora é querido pela população de NY e tudo parece estar bem em sua vida. O outsider, aquele cara que vivia à margem e era desprezado por todos, é finalmente aceito e reage de acordo, não como uma pessoa iluminada, mas como alguém que se deixa levar pela vaidade. E a vaidade alimenta seu lado sombrio.

Faz sentido, do ponto de vista dramático, fazer o herói se confrontar consigo mesmo, com a sua pior versão e é o que o uniforme negro representa. E não podemos esquecer a clara influência dos filmes do Superman com Christopher Reeve sobre a trilogia de Raimi, que segue a mesma estrutura dramática dos longas do Homem de Aço: no primeiro filme, o herói surge e encara seu primeiro grande desafio; no segundo, ele sente a ânsia de viver como um homem normal e abandona seu destino e responsabilidade temporariamente; e no terceiro, enfrenta seu lado sombrio.

Também faz sentido Peter empreender, perto do final do filme, a jornada de perdão ao assassino do seu tio. Por mais que as circunstâncias que levam até esse final entre Peter e Marko tenham sido estranhamente conduzidas, a cena climática entre eles é poderosa. Bem de acordo com a visão de Raimi, este vilão não é totalmente mau e sua existência serve como um degrau a mais no amadurecimento do herói que, ao longo dos três filmes, passa de menino a homem. Entre aos trancos e barrancos, a emoção e a mensagem do filme são transmitidas.

Não é à toa que o Venom é o único vilão realmente unidimensional da trilogia – ele quer matar o Aranha porque é mau e fim de papo. Esse personagem foi imposto a Raimi e à sua narrativa, portanto, ele não se coaduna com a visão do diretor. Mesmo assim, em meio a todas as trapalhadas do roteiro, ele também serve ao seu propósito: ao que parece, até alguém como Peter Parker pode deixar seus piores instintos se transformarem em um monstro que tenta dominá-lo. Complementando a mensagem do anterior, os cineastas parecem dizer que podemos superar os monstros dentro das nossas almas, por mais que alguns de nós – como Brock – acabem sendo consumidos por eles.

ESPERANÇA, A MATÉRIA-PRIMA DOS SUPER-HERÓIS

No fim das contas, com este filme, Sam Raimi se tornou o primeiro cineasta em Hollywood a completar uma trilogia de filmes com um super-herói de quadrinhos. Homem-Aranha 3 foi um sucesso enorme de bilheteria, o mais bem sucedido comercialmente dos três filmes. Mas deixou um gosto amargo junto a muitos fãs.

Hoje em dia, é um filme zoado, claro, e com razão, um exemplo de interferência de estúdio e más decisões descarrilhando uma grande franquia hollywoodiana. Por algum tempo, Raimi até tentou desenvolver um quarto filme, mas não conseguiu chegar a um acordo com a Sony/Columbia e os produtores. Algo havia se quebrado ali. Ele se afastou da saga do Aranha, Maguire e Dunst se foram com ele e o estúdio escolheu dar um reboot na franquia – sinceramente, prefiro Homem-Aranha 3 a qualquer um dos dois filmes com o Andrew Garfield.

Revendo a trilogia hoje, é claro que o terceiro longa é o pior. Mas não me parece tão ruim quanto sua reputação ou as brincadeiras na internet fazem parecer. Claro, é um filme falho, mas que ainda tem carinho pelos seus personagens, que angariam uma grande dose de boa vontade junto aos fãs. Os três filmes juntos contam uma bela história de crescimento, de altruísmo e de aprendizado com os próprios erros. Apesar dos pesares, a conclusão de Homem-Aranha 3 é até um pouco triste, mas esperançosa. Obviamente não era nessa nota que os cineastas gostariam de ter deixado esses personagens, mas ela funciona mesmo assim. Esperança, afinal, faz parte da matéria-prima dos super-heróis.