Viver (Ikiru) de Akira Kurosawa, de 1952, é um dos filmes mais belos da história do cinema. Não fique só com a minha palavra, leitor: se você nunca viu, dê um presente a si mesmo e o assista; não se esqueça de uns lenços e reserve um tempo para refletir sobre a sua vida depois. E se você já o viu, então conhece sua beleza e encanto. E o maior mérito de Living, refilmagem britânica do clássico, é o de manter a força da história intacta ao adaptá-la para o contexto da Inglaterra pós-Segunda Guerra Mundial.

O filme, dirigido por Oliver Hermanus (“Beleza Arrebatadora”), conta praticamente a mesma história do original japonês: Williams (vivido por Bill Nighy) é um burocrata que trabalha no setor de obras da prefeitura e, assim como outros no seu departamento, não faz muita coisa além de empurrar papelada de um escaninho para o outro. Um dia, descobre que vai morrer – o médico lhe dá seis meses de vida – e, por consequência, descobre também que não viveu. É viúvo e um estranho para seu filho e colegas de trabalho. Mas ele encontra um propósito para seus últimos dias ao mobilizar seu departamento para construir um parquinho para crianças em um setor dilapidado da cidade.

O roteiro de Living é de autoria do romancista Kazuo Ishiguro, vencedor do Prêmio Nobel, e inteligentemente não tenta reinventar a roda. É muito bom observar como o texto é fiel e respeitoso com o original, fazendo apenas um trabalho de edição e adaptação. Neste sentido, se existe um contexto onde essa história funciona, além do Japão, é na Inglaterra: dois povos bem disciplinados, duas sociedades bem estruturadas, conseguem gerar tipos como este protagonista. Em duas culturas que se pautam pela repressão das emoções, a história concebida por Kurosawa tem mais ressonância – aliás, um dos descendentes do mestre, Ko Kurosawa, é produtor-executivo aqui.

Nighy & WOOD: CONTRASTE ENCANTADOR E COMPLEMENTAR

Esteticamente, “Living” parece um filme perdido dos anos 1940, só agora descoberto. Exceto pela fotografia digital, outros ingredientes do cinema do período estão lá: os créditos de abertura, a trilha sonora ao piano, bonita e geralmente discreta, o formato de tela quadrado… A reconstituição de época nos insere naquele contexto, naquela sociedade rígida onde o sr. Williams é praticamente uma instituição encarnada, o que fica claro logo no início na estação de trem, onde é aconselhável que as pessoas façam silêncio enquanto esperam. É um mundo que não facilita emoção, repleto de figuras como Williams que nunca se destacam, e quando aparece alguém mais emotivo, como a jovem interpretada pela ótima Aimee Lou Wood – da série Sex Education – ela logo se destaca.

Nesse universo, a atuação de Bill Nighy é perfeita, um trabalho admirável de restrição e de performance internalizada. O seu personagem nunca eleva a voz – aliás, às vezes parece que falar para ele é um esforço – e o máximo que consegue dizer da sua doença é que é uma “chateação”, ao ensaiar o que vai falar para o filho. Mas podemos intuir um mundo de sensações às vezes, pelos seus olhos, pelo seu rosto que quase nunca muda, pelo sorriso ocasional. Um belo momento do filme é quando Williams e a jovem srta. Harris estão no cinema, e o ângulo da câmera parece fazer a luz do projetor emanar da cabeça dele. É um filme de pequenos momentos como esse, e que nos emociona justamente pela reflexão que desperta.

Claro, é impossível para Hermanus, Ishiguro e todos os envolvidos superarem Kurosawa. Quando Living vai se aproximando do seu final, a trilha sonora se torna ligeiramente mais intrusiva, percebe-se o filme tentando emocionar um pouco mais o espectador de uma maneira mais clichê. Nada muito exagerado, claro, afinal ainda é um filme britânico, mas o Viver japonês emocionava mais ainda justamente porque não fazia isso. A restrição de Kurosawa fazia o espectador se emocionar, não os personagens dentro da história, e em Living eles parecem se articular para ter alguns momentos emotivos e, por conseguinte, comover a plateia também.

Mas não é pecado ficar abaixo de Kurosawa. Living funciona por seus próprios méritos e a bela atuação de Bill Nighy, um veterano das telas que merecia um grande papel como este, fica na memória. É um filme de classe, extremamente bem realizado e que não faz feio frente a um monumento da história do cinema – é mais do que se pode dizer da maioria das refilmagens. Assim como seu antecessor, é uma obra sobre o que deixamos para trás, e como a maior tragédia da vida é não deixar nada.

Veja-o, mas não deixe de ver também o original.

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