Marte Um, de Gabriel Martins, começa literalmente na noite em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente em 2018. Um garotinho negro olha para o céu enquanto os fogos de artificio pipocam à distância, em comemoração. É um filme que não tem um enfoque abertamente político, mas só por existir no Brasil de hoje, por contar a história que conta, com esses personagens, acaba sendo uma obra política. É também um filme muito humano.

Pelas suas quase duas horas acompanhamos a família Martins, gente preta que rala para tocar a vida. Tércia (Rejane Faria), a mãe, passa por um sufoco em uma gravação de uma dessas pegadinhas bobas da TV e começa a desenvolver insônia e síndrome do pânico. Eunice (Camilla Souza), a filha, começa um relacionamento com uma jovem e passa a contemplar a ideia de sair de casa. O pai, Wellington (Carlos Francisco), trabalha em um condomínio chique – cheio de “coxinhas”, como seu colega de trabalho diz em certo momento – e coloca todas as esperanças da família no talento do pequeno Deivid (Cícero Lucas) com a bola. Mas Deivid não quer saber muito de futebol. Seu sonho mesmo é virar astrofísico, e um dia viajar para Marte na primeira missão de colonização do planeta vermelho!

Martins, também o roteirista, dirige Marte Um com segurança e discrição. Sua câmera é uma mosquinha na parede, focando os dramas dos seus personagens. Algumas cenas, porém, têm um tom ligeiramente estranho, como a da pegadinha no início, e outras com o ator/humorista Tokinho não se concatenam muito bem com o resto da narrativa. Mesmo com alguns excessos, de modo geral, é um filme bem resolvido em que a técnica dá lugar à intimidade e às relações entre os personagens. Várias cenas são captadas em planos longos, para não desfazer esse senso de intimidade. A câmera nunca é intrusiva, embora em alguns momentos se dê ao luxo de uma qualidade mais poética – como o plano que mostra duas sandálias voando no céu.

AFETO ACIMA DE TUDO

A melhor qualidade de Marte Um é mesmo o naturalismo dos seus atores. Ninguém ali parece estar atuando; é como se acompanhássemos uma família da periferia de verdade durante algumas semanas. Uma família que, apesar dos perrengues, se ama, e o filme também demonstra um grande carinho pelos seus personagens.

A câmera se permite observá-los em momentos ternos, como quando Evelyn e a namorada vão visitar uma cobertura chique na qual não poderão morar, e acabam transando; ou quando vemos a mãe observar com ar de preocupada a sua família em uma celebração de Natal. Esses pequenos momentos permitem ao filme ganhar mais vida e o efeito ao final é de criar no espectador também um carinho por aqueles personagens.

Na sua introdução ao filme na exibição no Festival de Sundance, o diretor Gabriel Martins falou como seu filme foi rodado em 2018, justo naquela época complicada que o Brasil vivia, e acaba sendo lançado só agora em 2022, apontando para as possibilidades do futuro. Marte Um é uma obra otimista, mesmo mostrando a situação difícil de pessoas para as quais uma considerável parcela da sociedade brasileira não quer olhar, justamente aquelas que mais sofreram com os últimos anos.

Mas o filme olha para o céu: em uma bela rima visual com o seu início, se configura como uma obra sobre esperança que se recusa a morrer. Martins falou que seu filme é uma “carta de amor ao Brasil”, e na visão do longa são pessoas como essa família que constituem o país, não aqueles no poder. Elas sobrevivem, dão um jeito, enquanto esses outros passarão. E elas o fazem, contra todas as evidências, sonhando com um amanhã melhor onde será possível ir a outro planeta.

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