Na calada da noite, a protagonista de “Memória”, novo filme de Apichatpong Weerasethakul (“Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”), acorda com um barulho. Ela está desperta e sabe, de forma inata, que nada será como antes. Infelizmente, a mesma sensação não deve contagiar o público da produção. Exibido no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary deste ano depois de sua estreia em Cannes, o longa tem tudo o que os fãs do diretor desejam, mas seu ritmo soporífero deve alienar as demais plateias.

Nele, Jessica (Tilda Swinton) é uma britânica na Colômbia tocando um negócio de venda de flores enquanto sua irmã Karen (Agnes Brekke) se recupera de uma doença em um hospital. Ela começa a ouvir pancadas secas e estridentes que ninguém mais percebe e parte em uma investigação pessoal para entender o que está acontecendo consigo. Eventualmente, Hernán (Juan Pablo Urrego), um jovem técnico de som, começa a lhe dar boas pistas.

SWINTON EM ISOLAMENTO

Weerasethakul, dirigindo pela primeira vez fora de sua nativa Tailândia, encontra em Swindon uma colaboradora e tanto. A milhas do frenesi de sua colaboração com Almodóvar no ano passado, “A Voz Humana”, a atriz entrega aqui uma atuação controlada e gélida, através da qual nada sobre Jessica é informado de maneira clara. Ainda que Swinton arranhe um espanhol convincente, sua interpretação sugere um isolamento diante da terra estrangeira que vai além da linguagem.

Este viés não é particularmente novo para o diretor, cuja obra se ocupa largamente do espaço psicológico de personagens solitários. Suas cenas lentas e silenciosas conferem um misticismo e um tom sobrenatural ao que acontece em seus filmes. Isso aparece em “Memória” quando Jessica se choca ao descobrir que Hernán aparentemente nunca existiu, mas encontra um outro Hernán (Elkin Dias), mais velho, que partilha uma conexão com ela.

O talento de Swinton em envolver o espectador, bem como a estrutura da história, geram um desejo por respostas que é frustrado pela absoluta resistência do roteiro, assinado pelo cineasta, em oferecê-las. Sempre que ela parece descobrir alguma coisa sobre sua condição, a ação muda de foco. Quando, no terceiro ato, o ritmo desacelera ainda mais, ela encontra o Hernán velho e uma conclusão parece se aproximar, um novo fato é jogado na trama e remove qualquer certeza.

ROTEIRO E SUAS PONTAS SOLTAS 

“Memória”, ao se manter atento aos fenômenos naturais que circundam Jessica, é mais bem-sucedido na atmosfera e tem sua leveza. O cineasta pinta a Colômbia em tons cinzas e penumbrais, constantemente sob chuva forte. Mesmo quando a busca da personagem de Swinton a tira dos centros urbanos de Bogotá e Medellín e a remete ao coração do país, o clima nebuloso permanece como um lembrete de que há algo se desenhando por trás da aventura da protagonista.

Esse pano de fundo, combinado com a natureza investigativa de Jessica, tornam o longa uma espécie ultralenta de filme noir – porém, isso não casa com o estilo do diretor, que favorece ambiência à narrativa. O cinema de Weerasethakul é, sobretudo, um cinema de sugestão e possibilidades – o que não é algo ruim – mas há tantas pontas soltas na costura de “Memoria” que ele acaba, como sua personagem principal, perdido em si mesmo.

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