Durante o isolamento social forçado pela pandemia de Covid-19, eu recorri a filmes que eu já conhecia de trás pra frente, como uma forma de ter algo reconfortante em tempos tão incertos. Sei que com muita gente foi assim também, e que um tipo de filme, em especial, preenchia de esperança aquelas horas tão estranhas e tristes: as comédias românticas. Estreladas por Hugh Grant, então? Imperdíveis. 

Essa divagação toda tem um ponto, juro. Em determinado momento de “Na Ponta dos Dedos”, do diretor grego Christos Nikou, os personagens vão a uma mostra de cinema com programação exclusiva de filmes com Grant, porque “ninguém entende mais o amor”. É engraçado enxergar a herança de clássicos recentes como “Um Lugar Chamado Notting Hill” e “Mensagem Pra Você” (este, sem Grant, eu sei) em um novo exemplar da comédia romântica – em seu formato mais estranho -, em elementos que vão bem além da citação solta em um diálogo. 

Com um elenco quase algorítmico de tão hypado (de forma justa, ressalto), “Na Ponta dos Dedos” é uma comédia romântica contada à moda grega, mas também herdeira do cinema estadunidense do início dos anos 00, com uma história que poderia bem ser derivada de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (dirigido pelo francês Michel Gondry e roteirizado pelo hollywoodiano Charlie Kaufman): Anna (Jessie Buckley) começa a perceber que sente algo a mais por um colega de trabalho, Amir (Riz Ahmed), e resolve testar se há reciprocidade entre eles. 

ACIDEZ AO ROMANTISMO

Nada muito estranho, se não levarmos em consideração que esse teste não é um mero quiz de revista, e sim algo científico, com etapas que se assemelham à detecção de uma doença. Mais do que isso: no mundo de “Na Ponta dos Dedos”, amor (ou a falta dele) é negócio lucrativo. Os casais que se submetem ao processo do Instituto do Amor precisam passar por uma série de provas, que vão de atividades ao som de músicas em francês a exercícios de contato visual em uma piscina, até o exame final que detecta nas unhas (!) se há amor e se ele é recíproco.

Nessa gamificação do amor, floresce a atração entre Anna e Amir, que trabalham justamente aplicando os testes nos casais. O filme é esperto ao não vilanizar o companheiro da protagonista, que, vivido por Jeremy Allen White, parece uma nova versão do personagem de Greg Kinnear no já citado “Mensagem Pra Você”. 

Aqui, as complexidades de cada relação são desenvolvidas com cuidado seja na ambiguidade ou seja na escolha mais direta, e Buckley segue como uma das atrizes mais fascinantes da atualidade ao jogar com a confusão de sentimentos que parecem bater repentinamente em Anna. A construção da atriz dá a profundidade suficiente para que entendamos que esse “repentinamente” é, na verdade, a culminação de toda uma vida. 

“Na Ponta dos Dedos” talvez não seja um filme-conforto à moda das comédias românticas que crescemos amando, mas, enquanto um exemplar sobre a indecisão solitária do millennial, pode ser uma companhia ácida para contrabalancear a doçura de uma tarde qualquer com Julia Roberts e Hugh Grant em uma livraria de Notting Hill.