É sempre difícil adaptar uma obra literária para o cinema, pois a complexidade e a subjetividade da escrita e leitura nem sempre é transpassada para as telonas. Trata-se de um trabalho desafiador, corajoso. Um processo que requer cuidado e meticulosidade. Alguns poucos filmes conseguem ser melhor ou se igualar ao livro, outros tantos ficam no meio termo e outras centenas não correspondem às expectativas.
O Silêncio da Chuva, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, falecido ano passado, é uma obra policial que tem como protagonista Spinoza (aqui, protagonizado por Lázaro Ramos), um introspectivo e um tanto inseguro (na sua vida privada) delegado que deve desvendar o assassinato de um rico empresário, mas há alguns percalços nessa investigação.
Quem matou Ricardo (Guilherme Fontes) e por quais motivos? Junto com sua fiel escudeira Daia (Thalita Carauta, soberba) ele busca por respostas pelo crime e se vê envolvido a intrigas e gente tão poderosa como vulneráveis, representados aqui pela esposa do falecido, Beatriz (Cláudia Abreu) e a sua secretária e amante Rose (Mayana Neiva), respectivamente, e aqueles que, literalmente, entram “de gaiato no navio”, como é o caso do malandro Maximiliano (Peter Brandão) e o michê Júlio (Bruno Gissoni). Também há aqueles que estão na busca em solucionar o caso, como Aurélio (Otávio Muller) – personagem importante na trama – e um jovem policial (Pedro Nercessian).
Em meio ao caso turbulento, somos apresentados também a um Rio de Janeiro mais gélido, dramático e melancólico, longe daquele calor e humor típicos. O clima noir e suas locações dão um ar mais melodramático ao longa dirigido pelo mestre Daniel Filho (“Se Eu Fosse Você”), que há muito tempo não entregava um filme convincente. O roteiro assinado por Lusa Silvestre (do clássico “Estômago”) auxilia na direção de Filho em não cair em falhas comuns do diretor como montagem duvidosa e piadas infames.
Aliás, as piadas estão presentes na presença de Thalita, de longe, a melhor interpretação do filme. Sua Daia é uma policial segura, dona de si, comprometida com seu trabalho e com sua vida, além de uma metralhadora de falas precisas e necessárias em momentos oportunos.
FORÇA FEMININA E RACISMO NAS ENTRELINHAS
O grande acontecimento de “O Silêncio da Chuva” é mesmo as mulheres, pois elas dominam a cena, embora o filme seja defendido muito bem por Lázaro Ramos, voltando ao drama para quem estava acostumado com as comédias na TV. Cláudia Abreu está à vontade no papel de viúva cínica, irônica, propositalmente dúbia e nada frágil, enquanto Mayana Neiva impressiona na pele da angustiada secretária; é dela o maior ato do filme em uma cena trágica e dificílima.
Todas elas também são sexualmente bem resolvidas e não sexualizadas. Essa presença forte e feminina não deixa de ser um alicerce para Spinoza: elas estão sempre ali, para o bem ou mal, auxiliando ou não na solução do caso.
Há um ponto interessante que pode passar despercebido aos menos atentos: a questão do racismo. No livro, Spinoza, é um homem branco de meia idade. Ao optar por essa troca importante, Filho nos alerta o que muitos já deveriam saber: papel não tem gênero nem raça definidos e todos os atores podem interpretar qualquer papel, basta oportunidade.
E o racismo está bem singelo, quando um personagem diz para Spinoza que “ele fala bem” ou um outro que questiona o seu nome, inspirado no filosofo holandês Baruch Spinoza, como se um negro não pudesse ter esse acesso mais sofisticado e ainda ser delegado, isto é, no topo da pirâmide naquela instituição. A própria Daia, exímia investigadora e seu braço direito, é uma mulher negra empoderada e consciente. São pequenos detalhes, sem alarde ou frases de efeito que enriquecem o conjunto.
O Silêncio da Chuva é um suspense bem recortado, nada de mirabolante e com um final óbvio, porém há uma cena pós-créditos que deixa no ar perguntas que são prontamente respondidas. Mais uma vez, fique atento aos sinais, pois, lá no início da trama, ele dá pistas que se concretiza nesse “pós-final”.