Em 1995, Colin Firth interpretou o senhor Darcy na série da BBC que adaptou “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen. Dez anos depois, Matthew Macfadyen eternizou o personagem no filme de Joe Wright, tornando-se o crush de muitas jovens e adolescentes. John Madden (“Shakespeare Apaixonado”) reúne, agora, os dois Darcys para protagonizar “O Soldado que não Existiu”, produção disponível na Netflix baseada em uma história real ocorrida na Segunda Guerra Mundial.

Acompanhamos dois agentes britânicos (Firth e Macfadyen) que criam uma estratégia focada em fake news para conseguir uma boa vantagem sobre a Tríplice Aliança, formada por Alemanha, Itália e Japão. A dupla arma um plano para convencer as tropas nazistas sobre um ataque na Grécia, quando, na realidade, o desembarque das tropas aliadas acontecerá na Sicília.

Para isso, plantam informações falsas em um cadáver jogado ao mar em um plano bizarramente improvável. Mergulhamos na narrativa criada por eles e como isso afeta as relações que estão a sua volta e até mesmo os rumos da própria guerra.

Uma mentira bem elaborada

Para uma mentira ser aceita, ela precisa ser convincente. Os dois elementos que tornam isso possível são os retoques de realidade e o entorno da falsa afirmação. Como costumam dizer, para ser crível, a mentira precisa ter um pouco de realidade. Em “O Soldado que não Existiu”, ela se torna aceitável porque, além disso ocorrer, a ficção tão interessante quanto a narrativa dos personagens reais e, em alguns casos, chega a misturar-se com a trajetória deles.

A primeira parte da trama se dedica a apresentar os personagens e a proposta a ser executada durante a operação Mincemeat. Compreendemos quem é Ewen Montagu (Firth) e Charles Cholmodeley (Macfadyen) assim como a relação que tem com seus superiores e familiares, para então percebermos como a persona criada para o major Martin possui um pouco da experiência de cada um deles. O interessante é notar como a história consegue ser direta neste momento inicial e intimista, captando as características tanto dos personagens centrais quanto daqueles que estão ao seu redor.

Esse contorno oferece a “O Soldado que não Existiu” um desenvolvimento mais dramático, mesmo sem cenas em campos de batalha ou de ação – como se espera de um filme sobre a Segunda Guerra Mundial. A narrativa foca na tensão militar, prevendo, inclusive, conflitos políticos futuros. Contudo, a escolha de se aprofundar nos personagens, enquanto segue a execução da operação, abre espaço para que a espionagem domine a tela. O clima intimista e de confabulações da primeira parte cede lugar ao jogo de espionagem e o suspense de não saber em quem confiar.

As relações acima do jogo

O roteiro assinado por Michelle Ashford (“The Pacific”) costura bem a mentira criada com os personagens em paralelo às vidas que levam e às meias palavras que se tornam vigentes em suas ações e olhares. É neste sentido que “O Soldado que não Existiu” ganha forças: projetando as relações acima do jogo de espionagem e da guerra.

Há sempre o não dito que ocupa a tela como um cadáver a observá-los (com perdão da tentativa de trocadilho). Apesar de conhecermos as motivações e rotina, é por meio da vida que criam para o major William que eles expressam seus desejos mais íntimos e o que sentem em relação aos outros. Compreender que os diálogos sobre o casal inventado dizem mais sobre eles do que sobre o embuste que estão armando, torna o filme mais envolvente e curioso.

O roteiro e a direção são precisos e eficientes em apresentar essas contravenções no ambiente retratado. O elenco escolhido contribui muito para que isso aconteça. Firth está ótimo como o galã de meia idade, advogado respeitado e que vê na ilusão de William e Pam a emoção que não possui no seu casamento. Lembra bem a junção de outros dois personagens interpretados por ele: Mark Darcy, de Bridget Jones, e o agente Harry, de Kingsman. Já Macfayden emula alguém com boas ideias, porém tímido. A parceria deles flui com bastante química, embora para endossar Ashford utilize um triangulo amoroso que não dá tão certo, justamente pelo não dito.

A trama ganha forças porque consegue juntar as relações e a espionagem de forma que cada uma tenha o seu momento e se sincronize para oferecer ao espectador uma pitada das movimentações humanas em meio a inteligência de um país envolvido na segunda guerra mundial. Ter Ian Fleming, o pai do espião mais popular da cultura pop, como parte da história só torna essa conjuntura bem mais interessante.

“O soldado que não existiu” é sobre isso. Sobre o uso positivo de fake news e convívio.

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