Esta sessão começava às 21h45. Chequei a duração de “Perfect Days”: 123 minutos. O Metrô Rio fecha à 0h. Teoricamente daria tempo.  

O problema é que a sessão nunca começa exatamente na hora anunciada – pelo menos, não no Rio de Janeiro. Fora isso tem os anúncios e vinhetas antes do filme. Some todos esses fatores e era bem possível que eu saísse depois de 0h do Cine Odeon. O que seria um problema porque meu celular estava descarregando vertiginosamente rápido e, em todo caso, a perspectiva de gastar dinheiro com Uber não me apetecia. 

“Perfect Days” começou às 21h53. O que significava quatro minutos para embarcar na estação da Cinelândia ao final da sessão. Seria o suficiente. A não ser que o povaréu congestionasse a saída do cinema. Para garantir, era melhor levantar correndo assim que os créditos finais pipocassem. Pronto. Daria certo. 

O filme começa. A imagem está em 4:3, eu penso, ao mesmo tempo em que o rapaz atrás de mim exclama para a namorada: “4:3!”. Vai ser uma longa sessão.  

Isso foi rodado em película? Sempre algo positivo. Vamos entrar nesse ritmo. Está na hora de esquecer o mundo exterior. 

(Nota posterior: Wim Wenders não rodou em película, mas adicionou um grão safado às imagens. Dessa vez deixo passar). 

Ok, então esse cara acorda e faz a barba todas as manhãs. Ele apara o bigode. Molha suas plantas, das quais cuida com enorme satisfação. Daí coloca seu macacão azul, pega um café e parte pro carro. Escolhe uma fita cassete da sua coleção de classic rock e dá play.  

Daí, seu trabalho em si. Limpar os banheiros públicos de Tóquio. Tóquio é uma cidade estranha. É tanto prédio que ela parece estar sempre à sombra dos seus arranha-céus. Ainda assim, de tempos em tempos, o homem olha para as nuvens.  

Ele limpa um, dois, três banheiros. Um jovem falastrão o acompanha no trabalho. O homem não diz nada. Ele se contenta em fazer um trabalho bem-feito. Alguém chega, entra no banheiro, apertado pra mijar. Não nota a presença do homem, ou se a nota, ignora. Não há problema. O limpador de banheiros vai pro lado de fora e espera calmamente. Daí olha pro céu de novo. 

À noite ele sonha. 

No dia seguinte é a mesma coisa. E no outro também. Como pode alguém estar tão satisfeito com uma vida esfregando privadas? Para lhe fazer companhia à noite, um livro de Walt Whitman, que lê à luz do abajur. Ou seria Falkner? Não lembro. Ele tem inúmeros livros. Inúmeras fitas cassete também. É tudo que tem, na verdade. 

Ok, dá pra sacar que Wenders está filmando em película (não está) por um motivo bem específico. Para um homem analógico, é necessário o tratamento analógico. Um tratamento menos clínico. Um tratamento caloroso. Um tratamento menos eficiente segundo os ditames do “tempo é dinheiro”, sim. Mas a vida não pode ser só eficiência. Tem que ser bonita, também.  

Bom, uma coisinha acontece no trabalho. Então uma outra coisinha. Então uma coisona. A cada coisinha ou coisona um pedacinho a mais da vida do homem, que se chama Hirayama e é interpretado com a graça de um santo por Kōji Yakusho, é revelado. E então ele tenta seguir com sua rotina de banheiros. 

À essa altura, eu também estou totalmente imerso nessa gloriosa rotina de pequenos rituais cotidianos, mesmo com todas as suas aporrinhações. Eu deveria estar fazendo anotações para minha futura crítica no Cine Set. Deixa pra lá. Será que não posso só viver o momento? Parece que meu editor terá mais uma dor de cabeça pela frente. O pobre coitado já vive à beira do burnout sem minha ajuda. Me sinto culpado. 

Eu meio que quero morar em “Perfect Days” Eu quero limpar banheiros também. Será que eu conseguiria? É tão melhor ouvir música de forma analógica. Odeio Spotify. Graças a Deus tenho meus vinis. Preciso de um toca-fitas. 

O que acontece? Nada acontece. Tudo, etc. Alguém está prestes a morrer. Alguém reencontra outro alguém e é doloroso. Segunda-feira o trabalho recomeça. 

Isto não é um filme, é um mantra. É um estado meditativo. É um chamamento. Eu deveria voltar pra igreja. E não é por isso que as pessoas vão ao cinema? Queria aprender a olhar para as árvores como Hirayama olha. E não é por isso que as pessoas vão ao cinema? 

É preciso encerrar o texto. Meu Deus do céu, que filme lindo. É tão bonito estar de volta à noite depois de duas horas no cinema. Que cidade ótima, e que cidade péssima. Me sinto imensamente culpado por ter que correr para apanhar o metrô quando “Perfect Days” acaba.