Joy Griffin tem um problema: apesar de ser uma mulher branca e bem de vida na Chicago de 1968, ela está grávida e sua gestação passa a se tornar um risco de vida para ela. Na cena mais chocante de Call Jane, ela está diante de uma junta médica que vai avaliar se vão ou não autorizá-la a fazer um aborto de forma legítima, no hospital. Os médicos, todos homens velhos, não a autorizam. Joy pergunta: “Não há consideração pela vida da mãe, só pela do feto?”, e os homens respondem apenas com seus votos em voz alta. Um a um, eles dizem “não”, “não”, “não”.

Mas Joy, a protagonista da história, não é uma dona de casa comum – o filme dá uma dica disso no início ao mostrá-la dançando ao som de um rock da banda Velvet Undergound quando ninguém a está vendo. Ela vai atrás de um aborto por meios clandestinos e se depara com o grupo das Janes, uma organização que ajuda mulheres que não podem ter filhos e não têm a quem recorrer. Com o tempo, a protagonista se envolve cada vez mais com a organização, a ponto de arriscar sua vida pacata com marido e filha e até de ser presa.

Call Jane marca a estreia na direção da roteirista Phyllis Nagy, indicada ao Oscar pelo roteiro de Carol (2015). É parcialmente baseado na história do The Jane Collective, uma organização real que atuou por quatro anos nos EUA ajudando mulheres a realizar abortos. O roteiro de Hayley Schore e Roshan Sethi é preciso ao analisar a condição social da mulher naquela época e ao enfocar os seus dilemas. A evolução da protagonista e sua mudança, seu arco dramático, são bem delineadas.

Em termos visuais, o filme não impressiona tanto pela reconstituição de época – até mesmo porque não deve ter tido um grande orçamento de produção. Só a cena de abertura, enfocando os protestos que ocorriam no contexto da época, é que acaba sendo a mais grandiosa do filme.

A força do filme vem do ótimo elenco que Nagy conseguiu reunir. Elizabeth Banks interpreta Joy, e numa nota pessoal, preciso dizer que sempre a considerei uma atriz peso-pena, leve demais em suas atuações e com gosto um pouco duvidoso para projetos. No entanto, é preciso ressaltar que o trabalho dela aqui é muito bom, sólido, provavelmente o melhor de sua carreira. Ela tem a capacidade de despertar a empatia do espectador, e ao longo do filme Banks tem alguns momentos realmente dramáticos, nos quais se sai muito bem. Ao seu redor, o elenco de apoio é igualmente bom, incluindo Sigourney Weaver, Wunmi Mosaku, Kate Mara e Chris Messina. E Cory Michael Smith, como o médico aborteiro e seboso com um penteado à la Beatles, rouba algumas cenas durante o filme.

DERRAPADA NA RETA FINAL

Até bem perto do seu fim, Call Jane é um drama eficiente e envolvente sobre um problema que ainda hoje a sociedade como um todo não resolveu, e o analisa por um ponto de vista feminino bastante poderoso. Por isso, é uma pena que, nos minutos finais, o filme fique com um pouco de medo das próprias questões que está discutindo e seus realizadores coloquem na tela um final muito fácil para a história. Do nada, surge uma entrevo romântico entre o marido de Joy e a vizinha, a protagonista se depara com um grande problema, e tudo é resolvido rápido e fácil demais, como se a diretora estivesse com pressa de encerrar o filme.

Mesmo com esse desfecho fraquinho, Call Jane ainda é um drama recomendável que contém algumas atuações muito boas e toca o dedo num tema delicado que ainda hoje é debatido. No finalzinho, o tema social leva a melhor sobre o cinema e Nagy perde o controle sobre sua narrativa, mas, mesmo assim, é um filme que vale a pena ser visto, nem que seja pela cena dos médicos dizendo “não”, “não”.

Pelo menos ali, é um longa de uma força inegável.

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