Tom Hanks foi o apresentador do show especial no dia da posse de Joe Biden na presidência dos EUA. A escolha não foi por acaso: o astro duas vezes ganhador do Oscar consegue circular muito bem pelos democratas e não ser visto com rejeição pelos republicanos, mesmo aqueles mais fiéis a Donald Trump. Este trânsito para um país tão dividido e em pé de guerra serviu como uma forma do novo presidente dar um aceno aos derrotados em uma tentativa de criação de ponte para o diálogo.
“Relatos do Mundo”, novo filme de Tom Hanks com estreia prevista na Netflix para o dia 10 de fevereiro, busca caminho semelhante. A partir do western, o gênero cinematográfico mais americano de todos, a produção viaja para os anos 1870, época em que os resquícios da Guerra da Secessão criavam grandes ressentimentos e tensões em um país dividido entre os sulistas derrotados e os vitoriosos do norte. O longa dirigido por Paul Greengrass (“Capitão Phillips” e “Voo 93”) não nega nem traz a pretensão de minimizar estes problemas, mas, procura e tenta exaltar pontos em comuns da identidade nacional dos EUA para que haja o mínimo de diálogo entre as partes.
A história acompanha o Capitão Jefferson Kyle Kidd, veterano no conflito, que passa por vilas do Texas lendo as notícias dos principais jornais do país. Durante uma das viagens, ele encontra uma garota chamada Johanna Leonberger (Helena Zengel, excelente). Após ter a família, de origem alemã, morta durante um conflito por indígenas, ela acaba sendo adotada pelos algozes adquirindo toda a cultura e linguagem deles, porém, é recuperada pelas tropas norte-americanas e caberá a Kidd levá-la ao encontro dos parentes sobreviventes.
ESPERANÇA PARA TEMPOS SOMBRIOS
Em um certo momento do filme, Kidd e Leonberger estão no meio de uma estrada de terra no Velho Oeste e tentam travar um diálogo. Ele em inglês, ela em Kiowa, idioma indígena da região. Apesar das dificuldades, os dois vão se entendendo através de pequenas expressões em comuns, gestos e tons de vozes. É nesta busca pela comunicação, contato, ligação e tentativa de pertencimento que “Relatos do Mundo” busca criar elos, algo que nos acompanha desde os primórdios com os desenhos nas cavernas, os hieróglifos até as mensagens de Whatsapp dos dias atuais. Ao narrar as notícias, o personagem de Hanks estabelece estas conexões entre as mais diferentes pessoas com atenção total delas naqueles instantes, provocando de acessos de ira a espantos até risos – nada muito diferente do que o cinema e a arte de modo geral provocam em todos nós. De certo modo, Kidd serve para gerar uma unidade nacional em um momento em que ela parece não existir.
O roteiro de Greengrass e Luke Davies a partir do romance escrito por Paulette Jiles, entretanto, não se utiliza desta busca pelo diálogo para adotar uma postura isenta e apolítica. De maneira nem tão sutil assim, “Relatos do Mundo” utiliza referências da era Trump como os ataques à imprensa, fake news e até mesmo o lema da campanha do ex-presidente – aqui, vira ‘Texas First’ – para contrapô-lo com Kidd sendo uma espécie de mediador do debate, afinal, ele compreende a dor e a época difícil que todos passam como faz questão de ressaltar, porém, oferece o equilíbrio e a inteligência como saída.
Esse contexto político se sobressai tanto que deixa a jornada à la “Rastros de Ódio” relacionada à família de Johanna em segundo plano. Ainda assim, Greengrass surpreende na direção com uma abordagem diferente da vista em filmes como “Voo 93”, “Capitão Phillips” e de “A Supremacia e Ultimato Bourne”. Se nestas produções, a câmera estave sempre próxima da ação e em constante instabilidade, aqui, o britânico consegue dosar mais este estilo bebendo também na fonte do cinema clássico ao adotar planos mais abertos e trabalhar o espaço de forma ainda mais eficiente. A perseguição do trio de mercenários à dupla de protagonista é o auge disso com um trabalho brilhante do diretor de fotografia Dariusz Wolski e do desenho de som.
A invasão ao Capitólio e toda a tensa transição de poder entre Trump e Biden mostram que o consenso nos EUA está longe de ser alcançado, o que torna “Relatos do Mundo” uma quase utopia. Porém, em tempos tão ruins e sombrios, um pouco de esperança vinda de um sujeito tão querido como Tom Hanks nos ajude a nos conectar com aquilo que importa.