“Roberto Kahane e a Câmera Secreta do Dr. Salim” guarda tantas possibilidades que surpreende chegar ao fim sem ter abraçado nenhuma delas para valer. Sim, ali reside a defesa da preservação da memória audiovisual, mas, também há um filme sobre a família do Dr. Salim, outro filme sobre a carreira de Kahane, um filme sobre a cidade de Manaus, um filme sobre a cena cultural e cinéfila da cidade amazonense, um filme dentro do filme, e outros e outros filmes… 

São tantos pedaços, fragmentos e histórias se valendo da preciosidade do acervo das históricas imagens de Manaus que o documentário parece se esquecer do resto. Logo, se torna inevitável a sensação de cansaço e dispersão ao longo de um pouco mais de uma hora de duração do documentário. 

Entender quem é quem na produção lançada no início de junho em sessão especial no Teatro Amazonas ajuda a explicar este emaranhado de propostas: o Dr. Salim do título foi um comerciante, de origem judia, que chegou a Manaus junto com a família, fugindo do avanço nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Já Roberto Kahane é um diretor histórico do cinema amazonense, proveniente da geração cineclubista local dos anos 1960. A direção fica por conta de Jean Robert César, cineasta e produtor nascido no Rio de Janeiro que se mudou para Manaus nos anos 1990, e que, infelizmente, faleceu em janeiro de 2023. Coube ao próprio retratado finalizar a obra até como homenagem ao amigo. 

Esta gênese do projeto mostra que se joga em um ambiente seguro com Kahane cercado das memórias familiares e conduzido por um grande amigo. Tal zona de conforto em que se situa o documentário permite ao retratado contar passagens e mais passagens do contexto familiar e da Manaus de antigamente, por vezes, inclusive, retornando a pontos já abordados.  

Se não chega a incomodar os vaivéns, deve-se à habilidade de Roberto em contar causos com detalhes saborosos, especialmente, na tentativa de censura a “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, durante o I Festival Norte de Cinema Brasileiro, em 1969, com direito a uma manifestação de “protesto” do projecionista. Esta mesma habilidade, diga-se, acaba por ser traiçoeira, gerando os momentos em que “Roberto Kahane e a Câmera Secreta do Dr. Salim” mais se arrisca para além de uma cinebiografia autorizada ao trazer Kahane tecendo tenros elogios às paradas militares de 7 de setembro com a população, segundo ele, feliz e alegre, balançando as bandeirinhas do Brasil. Detalhe: isso em plena ditadura.  

Tudo isso intercalado com as imagens da Manaus e dos eventos na cidade de 50, 60 anos atrás, sejam filmadas pelo Dr. Salim ou pelo próprio Kahane, dono de cobiçados e raros equipamentos de gravação, como dito por ele mesmo. Dizer que o material é de uma riqueza histórica absoluta é ser mais redundante do que reclamar do calor, afinal, se os acervos no Brasil como um todo já são tratados com descaso há décadas, perdendo-se em incêndios criminosos, no Amazonas, onde falta o básico para hoje, olhar para o passado vira artigo de luxo na visão tacanha de 99,99% dos governantes. E para além das paisagens, costumes e roupas da época, chama a atenção quando estes registros permitem tirar a obra da zona de segurança ao humanizar aquele entrevistado, especialmente, na bitoca babada que recebe da irmã. É como se o filme ganhasse vida. 

 ESTRUTURA CONVENCIONAL

Infelizmente, não há imagens históricas que resistam a uma estrutura tão burocrática. “Roberto Kahane e a Câmera Secreta do Dr. Salim” segue uma nota só durante quase todo o filme: Kahane sentado, uma canetinha na mão e, ao fundo, o acervo. Por cima das falas, os registros do passado. E assim a banda toca praticamente até o fim. Há um certo momento de esperança quando o diretor manuseia um projetor antigo, mas, não demora muito e lá está novamente ele sentado na cadeira, uma canetinha na mão e, ao fundo, o acervo. 

Neste sentido, “Roberto Kahane e a Câmera Secreta do Dr. Salim” junta-se a “O Clã das Jiboias”, de Heraldo Daniel, de uma recente leva de documentários amazonenses com estruturas narrativas rígidas e pouco repertório criativo para além do tradicional formato entrevista + acervo histórico. Como bem notado por Clemilson Farias, produtor de “Noites Alienígenas” com quem conversei brevemente ao término da sessão, a construção do novo filme remete aos feitos pelo próprio Kahane lá nos anos 60, mostrados em pequenos trechos aqui. 

Para completar, a estrutura linear, além de óbvia, engessa o filme, culminando na fragmentação do foco. Toda a proposta de salientar a defesa da memória audiovisual fica em suspenso a cada nova etapa da carreira de Kahane ou do momento de Manaus por não ter uma conexão mais coesa com o assunto principal. No fim das contas, “Roberto Kahane e a Câmera Secreta do Dr. Salim” mostra-se uma obra com ótimas intenções, mas, que poderia ser muito maior caso se dispusesse a maiores riscos na forma e até em refletir profundamente sobre o que aquelas valiosas imagens dizem e representam.