Existe um apagamento da história negra na Amazônia, o qual sutilmente a professora de história e pesquisadora Patrícia Sampaio denomina de silenciamento. O trabalho que ela desenvolve em seu núcleo de pesquisa acadêmica na Universidade Federal do Amazonas escoa em “Alexandrina — um relâmpago” de Keila Sankofa. O curta oferece protagonismo a jovem mestiça que trabalhou para o casal Agassiz em suas viagens pela nossa região. 

Por meio de um manifesto com muitas tonalidades íntimas, a diretora explora ancestralidade, discute cultura e conhecimento das questões afro-ameríndias e a situação da mulheridade negra no território. Alexandrina sai do desconhecimento que a história lhe regalou para ser retratada de forma magnânima e ter seus traços reconstruídos, desta vez sob a perspectiva de uma mulher negra. 

Em seus relatos sobre a jovem, Sampaio destaca o quanto seus cabelos chamavam a atenção de Elizabeth Agassiz e dos homens que a acompanhavam, a ponto de quererem eternizá-la por meio de imagens. Já comentei aqui o quanto os cabelos são importantes para a identidade das mulheres negras, e os de Alexandrina, assim como as paragens por onde passou com os viajantes da Amazônia, lhe renderam uma colocação na outridade como uma figura exótica, sexualizada e digna de ser observada pelo olhar branco estrangeiro. Não à toa a narração em off interpretada por Isabela Catão transparece raiva, resignação e um certo rancor. 

A busca por uma concepção memorial

Ao partir desta perspectiva histórica, no entanto, Sankofa faz o caminho a contrapelo. Ela toma as imagens da figura histórica a fim de levantar questionamentos sobre a projeção — dos quais me chama muito atenção o “eles não sabem nada da gente” por guardar inúmeras reflexões acerca de quem é essa gente desconhecida e que tipos de conhecimentos podem ser desencadeados — pautados em como esta também é um instrumento de aprisionamento negro. Além de realizar uma releitura imagética da protagonista, dessa vez sob a perspectiva de uma mulher negra e amazônica que se interliga a narrativa contada, atrelando e projetando sua imagem a personagem. 

“Alexandrina” busca emular um cinema sensorial. A fotografia assinada por João Paulo Machado e a direção de arte de Francisco Ricardo, dono de um Kikito por seu trabalho em O Barco e o Rio, são responsáveis pela sensação de força e ancestralidade que o curta-metragem emite por meio da escolha de planos que nos colocam no rastro negro regional em paralelo ao uso de primeiros planos nos objetos e no rosto de Sankofa, que encarna a personagem-título, transmitindo a potência e a simbologia negra amazônica carregada pela narrativa. Tudo isso envolto da plasticidade da mise-en-scene. 

De certa forma, o filme se confunde com a própria trajetória de Sankofa, uma vez que as reflexões narrativas externam um tema precioso a produção da cineasta como a busca pela história silenciada, por memórias, pelo rastro e a irmandade afro-ameríndia. Neste aspecto, é importante como o relato de Alexandrina se confunde com a trajetória do negro no país; em sua luta contra o silenciamento de sua presença na história e a fincar seus passos na cronologia de uma nação que apaga e aniquila corpos negros. 

Como parte do projeto Direito a memória, “Alexandrina — um relâmpago” não apenas resgata a história de uma personagem curiosa, mas dialoga com o presente e arrisca ao trazer o olhar de uma mulher negra sobre corpos negros que não tem medo de encarar a câmera e reivindicar o seu espaço. Como uma centelha, Alexandrina e Keila invadem, conquistam e ocupam.