Captar as sensibilidades que rondam a Amazônia e a vivência de seus moradores é um desafio que nem todos os cineastas estão dispostos a experimentar. A região, nesse sentido todo território sul-americano recoberto pelas suas florestas e rios, desperta curiosidade e o imaginário mundial, contudo conseguir demonstrar suas especificidades focando na subjetividade humana é uma percepção para poucos. E é isso que torna a direção de Nicolás Rincón Gille em “Tantas Almas” um ponto fora da curva.

A trama, também roteirizada por Gille, acompanha José (José Arley de Jesus Carvallido Lobo), que, ao voltar de uma pescaria, descobre que seus filhos foram levados pelos paramilitares. Começa assim sua jornada para encontra-los seja com vida ou não. O pescador veleja pelas águas do rio Magdalena e nos revela questões particulares, mas com reflexos universais.

O avanço paramilitar

Gille se baseou em relatos que ouviu durante a produção de um documentário na Colômbia. A narrativa é crua e aproveita-se do naturalismo para mostrar como a movimentação de paramilitares afundou o país em termos sociopolíticos. O roteiro nos conduz a perceber como eles influenciam na política e no convívio social das comunidades onde estão instalados.

A discussão surge em tempo oportuno, considerando a propagação de governos de extrema-direita e o apoio mútuo entre lideranças e esse exército particular. No caso da Bolívia, o ataque feito aos ribeirinhos, camponeses e ONGs instaurou um período de terror no país, bem pontuado no corpo do protagonista e na expressão no rosto de todos os civis não-armados que ele encontra em seu caminho.

A arte de José Arley de Jesus Carvallido Lobo

A magreza, os ombros curvados e o andar resoluto de Lobo evidenciam, no entanto, um novo olhar sobre o sistema pode meio de uma posição de resistência e perseverança. Gille é eficaz e feliz em contar a história de um pai em busca de seus filhos; pontuando de maneira delicada e sensível as ações extremas e a abnegação em amor àqueles que foram gerados dele. Acredito que se houvesse a presença de uma trilha sonora – que não fosse diegética – as emoções do público seriam melhor exploradas. Contudo, a potência seca de algumas cenas já garante o lugar de “Tantas Almas” no panteão de momentos emblemáticos do cinema latino, como a sequência da sopa e do cemitério.

Destaco o trabalho de Lobo, que consegue sustentar o filme e transpassar o sofrimento de um pai que tem seus filhos já adultos desaparecidos e mortos. Não é fácil para um genitor ter que sepultar um filho, estamos acostumados a ver isso com mães no cinema, porque a figura paterna é constantemente cercada de ausências. Porém a sensibilidade de Gille é tão aguçada a ponto de mostrar isso por meio de um pai, que passa seu momento de luto, lutando por dar um último descanso digno as suas crias. Uma verdadeira definição para amor.

Gille constrói o filme com traços de documentários – gênero ao qual está habituado – e é a presença de Lobo que consegue maturar a sua ficção. Alma do protagonista sofre e conseguimos captar isso por meio de seu corpo. Me permito abrir um parêntese para ressaltar o quanto seu trabalho mexeu comigo, a ponto de enxergar rastros de meu próprio pai no desenvolvimento do ator e personagem, tendo em vista a escolha do diretor por atores não profissionais.

Outras características amazônicas

“Tantas Almas” tem um ritmo lento, o que nos oportuniza imergir em dois aspectos constantes e importantes na produção: a fotografia e o rio. O olhar do fotógrafo boliviano Juan Sarmiento (“Alguma Coisa Assim”) fornece imageticamente a delicadeza e sensibilidade da situação proposta na trama. As cenas escuras, à noite, lembram bastante os contrastes do fotógrafo paraense Luiz Braga, captando uma Amazônia azul e alaranjada como a cor do céu, do pôr-do-sol e da terra que também pode ser árida.

Por outro lado, temos também a relação de José com o rio e a forma constante como o curso do rio Magdalena aparece na produção. O roteiro consegue mostrar de forma clara como este é fundamental a vida na Amazônia, reafirmando uma expressão célere de Leandro Tocantins: “o rio comanda a vida”.

Gille nos entrega um filme sensível, delicado que se preocupa em denunciar as ações de milícias na região. Uma produção necessária para conhecer um outro aspecto da Amazônia.

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