Uma atleta de saltos ornamentais em apuros guia a trama de “Tinnitus”, novo filme do paulista Gregorio Graziosi (“Obra”) que teve estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary deste ano. Ancorado na sólida performance da atriz Joana de Verona, o longa brasileiro se desdobra como um elaborado jogo de esconde-esconde em que o adversário está onipresente e sempre à espreita.

Verona interpreta Marina, a atleta em questão, cuja carreira sai dos trilhos quando um ataque de tinnitus – ruídos na parte interna do cérebro – a desorienta e a tira do páreo de um torneio internacional. Abandonando o esporte, ela se vê trazida de volta às plataformas por conta da fã Teresa (Alli Willow), sua substituta na equipe brasileira. Com a próxima competição se aproximando, ela entra em duelo contra a sua condição – uma ameaça interna e descontrolada que põe a integridade física (e seus sonhos) em risco.

O roteiro, co-escrito pelo diretor juntamente com Marco Dutra (“As Boas Maneiras”) e Andres Vera, mescla elementos do drama esportivo e do suspense psicológico para criar uma história de superação carregada de paranoia. Mas a maior referência de Graziosi aqui é o body horror – a vertente do gênero em que a fonte do medo está dentro do corpo – e ele bebe amplamente dessa fonte para trazer um algoz implacável e invisível para a telona.

inimigo interior

Grande parte do desconforto criado pela obra vem do desenho de som de Fábio Baldo (co-diretor de “Antes o Tempo Não Acabava” ao lado do amazonense Sérgio Andrade), que povoa o filme com um zumbido às vezes ensurdecedor similar ao experimentado pela protagonista e é quase um leitmotif do vilão. O tinnitus aparece como algo que, ao tirar a capacidade de Marina de competir, a alija da própria identidade e a força a questionar o que espera de outros aspectos da vida.

No turbilhão dos acontecimentos, a atleta confronta o relacionamento com o marido (André Guerreiro), médico responsável pelo tratamento dela e tem seus próprios interesses no que diz respeito ao futuro do casal. Esta subtrama se debruça sobre as complicadas relações de gênero e de poder de forma corajosa e reforça o ponto de vista decididamente feminino do longa.

Nesse embalo, é válido mencionar que “Tinnitus” passa pelo teste de Bechdel com louvor. As discussões principais da trama giram em torno da vida de Marina e suas grandes interações são todas com mulheres, entre elas a rancorosa ex-dupla Luísa (Indira Nascimento) e Teresa, cujas reais intenções são um mistério à parte. Conforme os 95 minutos de projeção avançam, ela vai se mostrando uma agente do caos de marca maior e fica para o espectador a missão de conectar os pontos.

As paisagens brutas e barulhentas de São Paulo – habilmente fotografadas pelo diretor de fotografia Rui Poças – são uma personagem em si mesma, em especial as ruas banhadas em neon do bairro da Liberdade. É nelas que a protagonista tenta escapar de sua doença e se encontrar, levando-a a tomar atitudes drásticas. Ao pintar um tenebroso retrato de um inimigo interior, “Tinnitus” entrega uma trama envolvente de ensurdecedora potência. 

Crítica faz parte da cobertura do Cine Set do Festival de Cinema de Karlovy Vary 2022.