Chega a ser curioso como “Uma Noite em Miami” ganhou configurações diferentes ao longo do tempo até o lançamento em janeiro de 2021. Afinal, na época em que foi idealizado e gravado, os EUA tinham Donald Trump no comando com sua política de lei e ordem a todo vapor sustentada com o ótimo desempenho econômico. Desta forma, a produção poderia ser encarada como um grito de resistência e convocação à luta para uma reeleição quase certa. A covarde morte de George Floyd por policiais brancos, porém, antecipou o despertar da população que saiu às ruas ecoando os movimentos de 1968. Com a derrota do republicano nas urnas, o longa poderia soar como uma celebração do fim de uma era de retrocessos, entretanto, a invasão ao Capitólio por supremacistas brancos serviu para manter o alerta mais ligado do que nunca.
Através deste cenário sócio-político atual e do histórico dos EUA em relação à causa negra, o filme de estreia na direção de Regina King (“Watchmen” e “Se a Rua Beale Falasse”) consegue trazer todo este discurso de resistência aliado ao entretenimento, sendo engajado, mas, ao mesmo tempo, leve e capaz de envolver até aqueles que desejam distância para o polêmico assunto.
Baseado na peça homônima escrita pelo roteirista Kemp Powers (“Soul”), “Uma Noite em Miami” busca imaginar o que foi tratado no encontro secreto entre o músico Sam Cooke (Leslie Odom Jr), o astro da NFL Jim Brown (Aldis Hodge), o ativista político Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) e o boxeador Cassius Clay (Eli Goree) em 25 de fevereiro de 1964. Naquela data, Clay conquistou o título dos pesos-pesados e estava prestes a se converter para o Islã, enquanto Malcolm entrava em atrito com o líder Elijah Muhammad e na mira do FBI de J. Edgar Hoover.
Grande parte de “Uma Noite em Miami” funcionar se deve ao precioso elenco proveniente da peça teatral. Cada um ao seu modo incorpora não apenas os trejeitos mais conhecidos dos seus personagens como injetam delicadezas necessárias para ampliar o escopo deles. Kingsley Ben-Adir recria a aura professoral de Malcolm X adicionando a angústia de uma pessoa que sabe ter um alvo nas costas. Já Eli Goree faz o oposto do colega ao ser expansivo, falar alto, mas, sempre com a preocupação de ser o elo de ligação e quebrar o gelo dos momentos mais tensos.
Ainda que fique em segundo plano perante os demais, Aldis Hodge aproveita as pequenas oportunidades para construir Jim Brown como o interlocutor capaz de mediar conflitos e expandir a visão dos amigos sobre os dramas dos outros. Acima de todos, está Leslie Odom Jr, fantástico na reprodução dos trejeitos de Sam Cooke cantar e também pela complexidade que envolve o personagem ao estar em uma linha tênue da questão racial.
PONTOS DE VISTAS ANTAGÔNICOS E CONVERGENTES
Aliás, aqui, o roteiro de Kemp Powers atinge momentos de brilhantismo: os embates entre Sam Cooke e Malcolm X expõe duas formas da luta contra o racismo. Ainda que não componha músicas engajadas e deseje a aceitação dos brancos, Cooke consegue, como aponta Brown, ser o único a ter liberdade financeira através dos royalties das canções, ou seja, ganhar o próprio dinheiro, vindo de brancos, sem intermediários, um privilégio para a esmagadora maioria dos negros ao redor do planeta.
Por outro lado, Malcolm defende uma cisão enfática com mensagens mais questionadores nas letras das canções, consciente de que a música possui um poder de comunhão raro entre as pessoas muito maior do que qualquer discurso consiga fazer, além de saber da capacidade do amigo para tanto.
São dois pontos de vistas antagônicos em seus métodos, mas, que, ao mesmo tempo, conseguem convergir para o objetivo em comum – a liberdade da sociedade negra da opressão branca. Uma lição valiosa para movimentos sociais que se perdem no meio do caminho devido a debates internos esquecendo o foco principal. Esta dinâmica entre o quarteto acaba por encobrir os problemas de ritmo de “Uma Noite em Miami”. Momentos como a ligação telefônica de Malcolm para a família ou a ida de Cassius e Cooke à lanchonete soam deslocados apenas com intuito de oferecer um pretenso dinamismo que o filme não precisava.
Longe de ser o filme mais brilhante da temporada, “Uma Noite em Miami” serve como um ótimo cartão de visitas da diretora Regina King ao demonstrar uma diretora habilidosa suficiente para compreender onde reside a maior força de sua produção. Além disso, o drama disponível na Amazon Prime pode ser uma forma de abrir os olhos daqueles mais desinteressados em política e na luta social em um período tão dramático como o atual.