Nada é o que parece ser em “We Have Never Been Modern”, produção tcheca que teve estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary. O filme do cineasta Matěj Chlupáček é hábil em misturar gêneros e entregar uma história que funciona em diversos níveis.  

A trama gira em torno de Helena (Eliška Křenková), médica que, em 1937, auxilia o marido Alois (Miloslav König) na construção de uma cidade planejada na Tchecoslováquia. Quando um feto intersexo aparece abandonado no local, Alois opta por usar bodes expiatórios para suprimir o caso e impedir que os boatos ameacem o projeto. No entanto, Helena começa uma investigação própria que a coloca em rota de colisão com todos à sua volta. 

Como a cidade em seu centro – e a sociedade tchecoslovaca do tempo retratado aqui – “We Have Never Been Modern” atrai o espectador como uma armadilha. Um suntuoso e extremamente bem-feito drama de época na superfície, o filme se torna uma história de detetive em que a protagonista aprende a não confiar em ninguém. 

PROTAGONISTA OBSTINADA 

O roteiro de Miro Šifra usa todos os elementos da história para dar camadas extras de significado. Ao escolher 1937 como pano de fundo histórico, ele toca nas ilusões de uma sociedade que busca um progresso, sem saber do perigo que a cerca (a Alemanha nazista invadiria o país no ano seguinte). 

Ao mesmo tempo, Šifra questiona a própria ideia de progresso desta sociedade. Em um contexto em que as percepções religiosas ameaçam projetos urbanísticos, mulheres ainda não têm os mesmos direitos do que os homens, e minorias vivem em um pânico silencioso por medo de serem rechaçadas, o roteirista usa Helena para perguntar: “Estamos avançando? E sim, para onde?”. 

No papel da médica, Křenková, que vem de uma esteira de papéis menores em filmes tchecos (como “Bird Atlas” e “Borders of Love”), entrega aqui uma de suas melhores atuações. Sua Helena é uma mulher com uma forte fibra moral que prefere ver as coisas como são do que como ela quer que sejam. 

Acompanhada de perto através de close-ups asfixiantes feitos com câmera na mão (que remetem à “mãe!”, de Darren Aronofsky), seu rosto ilustra a angústia e a resignação de alguém que vê grandes ideais caírem por terra, mas decide continuar lutando. Combinando isso com o incrível uso de cores do diretor de fotografia Martin Duba, o filme se assemelha a um sonho febril sobre o fim de uma era. 

Em 117 minutos de projeção, “We Have Never Been Modern” encaixa interlúdios animados, sequências de puro suspense, e cenas de drama conjugal em uma meditação trágica de um país em uma encruzilhada. Poderia não funcionar – mas funciona de uma maneira que pode render a este filme uma carreira internacional. Se ele encontrar distribuidores tão obstinados quanto Helena, quem sai ganhando é o público.