Os dilemas de uma cidade no meio da Amazônia no constante choque existencial entre o urbano e a floresta diante da explosão da criminalidade causada pelas facções criminosas. Nesta realidade urgente e mais do que atual se passa “Noites Alienígenas”, longa acreano ambientado em Rio Branco com direção de Sérgio de Carvalho. 

Adaptada do romance homônimo escrito pelo próprio diretor em 2011, a produção se utiliza do realismo mágico para acompanhar a história de resistência e esperança de três jovens na periferia de Rio Branco. O primeiro deles é Rivelino (Gabriel Knoxx), rapper e grafiteiro que deixa sua arte em forma de nave espacial pelos muros da cidade. Ele trabalha como aviãozinho para traficantes do local. De origem indígena e com uma mãe evangélica, Paulo (Adanilo) está em conflito com a própria ancestralidade enquanto lida com a dependência química em pasta-base de cocaína. Por fim, Sandra (Gleici Damasceno) é uma jovem negra e empoderada, mãe do filho de Paulo, tem na cultura Hip Hop, um refúgio e espaço de resistência. Uma tragédia irá reunir o destino deles. 

“Considero a questão da identidade como o principal tema de “Noites Alienígenas” a partir deste Acre antigo se encontrando com um novo Acre. Isso perpassa por todos que vivem na região, especialmente os jovens tentando se entender dentro desta grande cidade situada na Amazônia” 

Sérgio de Carvalho

diretor e roteirista de "Noites Alienígenas"

A produção da Saci Filmes e Com Domínio Filmes surgiu no contexto da política de regionalização do audiovisual brasileiro, fundamental para o desenvolvimento da atual safra do cinema nortista. “Noites Alienígenas” foi selecionado no edital de Baixo Orçamento para Longas-Metragens do extinto Ministério da Cultura, em 2017. 

O longa acreano começou a trajetória em festivais internacionais em grande estilo ao ser selecionado para o tradicional Festival de Gotemburgo, na Suécia, realizado entre os dias 30 de janeiro e 6 de fevereiro. “Ser selecionado para o festival foi muito importante, um belo nascimento para o filme. Apesar de terem mandado passagem e tudo, infelizmente, eu não pude estar presencialmente por ter positivado para a Covid, mas, o feedback que tive foi muito bonito das pessoas que assistiram ao filme e da própria curadoria”, declarou Sérgio em entrevista ao Cine Set que você confere abaixo: 

Cine Set – Gostaria que você falasse o que “Noites Alienígenas” representa para o cinema acreano do ponto de vista histórico. 

Sérgio de Carvalho – “Noites Alienígenas” é fruto de uma política de descentralização do antigo Ministério da Cultura. Foi selecionado no edital de filmes de Baixo Orçamento para primeiros autores da Secretaria do Audiovisual. Acredito que ele representa, assim como todas as produções da Saci Filmes e os filmes feitos na Amazônia nos últimos anos, a importância desta política de descentralização do audiovisual com foco no Norte do Brasil mostrando como ela pode dar resultado. Está sendo retomada agora de forma estranha após ter ficado parada durante quase todo este governo. 

O Acre vem desta tradição dos filmes de Super-8 que discutiam toda a questão da entrada dos paulistas, latifundiários e fazendeiros na Amazônia. É um cinema potente na forma de ser feito e o “Noites Alienígenas” inaugura um novo momento de filmes com alcance para festivais e salas de cinema como diversos outros Estados que nunca tinham conseguido produzir filmes com um pouco mais de recursos fazendo isso devido às políticas de descentralização. Acredito que seja um filme que representa um novo marco do cinema feito no Norte. 

Cine Set – “Noites Alienígenas” é uma adaptação de um livro seu de 2011. Quando você começou a pensar nesta transposição para os cinemas? E o que você mais quis preservar da obra ao fazer o filme? 

Sérgio de Carvalho – No prefácio do romance, o Marcos Vinícius aponta que era um livro-filme. Segundo ele, ao ler o livro, ele tinha a impressão de estar vendo um filme tanto pela estrutura como por ser muito imagético. O livro já trazia em si este DNA cinematográfico; acredito que isso decorra pela minha formação em cinema e o impacto do audiovisual na minha vida. 

Porém, em pouco mais de cinco anos depois que escrevi o livro, a periferia de Rio Branco mudou totalmente com a chegada brutal das facções criminosas do Sudeste para a Amazônia brasileira por conta das novas rotas de tráfico – igual ocorrera em Manaus e outras cidades da região. O “Noites” já debatia a questão da dependência química com o uso muito forte da pasta-base de cocaína em Rio Branco, mas, não abordava nada das facções. 

Depois da chegada destes grupos, Rio Branco se tornou uma cidade mega-violenta com um número elevado do assassinato de jovens. Foi impossível não escrever o roteiro sem abordar isso. Esta foi a primeira grande mudança. Tanto o livro quanto o filme possuem esta estrutura de caleidoscópio com várias tramas e personagens se encontrando em um desfecho trágico. O livro ainda tem muito mais personagens do que filme até mesmo pela linguagem cinematográfica. Aqui, resolvemos focar em dois personagens masculinos e uma feminina. 

Cine Set – A obra traz este dilema entre o urbano e a floresta, além dos choques identitários provocados por isso e consequências deste crescimento desordenado das grandes cidades da região refletido nas populações mais jovens. Diante disso, o que você buscou retratar de Rio Branco, sua população e conflitos neste cenário? 

Sérgio de Carvalho – Considero a questão da identidade como o principal tema de “Noites Alienígenas” a partir deste Acre antigo se encontrando com um novo Acre. Isso perpassa por todos os personagens, especialmente os jovens tentando se entender dentro desta grande cidade situada na Amazônia. Isso fica latente com o personagem indígena com a mãe evangélica, mas sonhando com a própria ancestralidade. 

Também busco retratar esta magia presente do encontro de culturas existente no Acre – a cultura tradicional do Estado de origem indígena dialogando com a trazida inicialmente pelos imigrantes nordestinos e, depois, de pessoas dos mais diversos lugares do mundo. Esse caldeirão cultural está representado no longa.  

Cine Set – Durante muito tempo, a Amazônia era palco de grande exotização nos cinemas. Porém, nos últimos anos, com os realizadores locais trazendo seus próprios pontos de vistas sobre a região, isso vem mudando. Como os filmes já feitos na Região Norte influenciaram a adaptação de “Noites Alienígenas”? E o que representa para este contexto a exibição em festivais como Gotemburgo? 

Sérgio de Carvalho – Em toda obra que já produzi como o documentário “Empate” sobre os companheiros do Chico Mendes, a série “Nokun Txai – Nossos Txais” e, agora, com “Noites Alienígenas”, sempre tive a preocupação de evitar o exotismo em relação à Amazônia, algo que foi feito demais. A proposta sempre passar por uma visão mais humanizada, contemporânea da região.  

Há toda uma cinematografia local sendo construída, inclusive, feita por indígenas aqui no Acre, fruto de oficinas como o “Vídeo nas Aldeias” com ritmo próprio. Obras de realizadores como o Zezinho Yube Kaxinawá assim como do Sérgio Andrade (“A Floresta de Jonathas” e “Antes o Tempo Não Acabava”) que retrata questões de identidade dentro de uma Manaus urbana são referências para o “Noites Alienígenas”.  

Observo que o cinema feito na Amazônia está chegando com uma força grande, de dentro para fora, e acredito que teremos ainda maiores obras. Espero que as políticas do audiovisual com olhar diferenciado para a região se reestabeleçam por serem essenciais para que esta produção não pare, mas, se amplifique. 

Cine Set – Quais são os planos para “Noites Alienígenas” em 2022 e o lançamento comercial? 

Sérgio de Carvalho – A ideia é que o “Noites” circule por muitos festivais em 2022. Estamos aguardando respostas de eventos que já fizemos inscrições. Vamos também fazer o longa viajar pela Amazônia. Ser selecionado para o Festival de Gotemburgo foi muito importante, um belo nascimento para o filme. Apesar de terem mandado passagem e tudo, infelizmente, eu não pude estar presencialmente por ter positivado para a Covid, mas, o feedback que tive foi muito bonito das pessoas que assistiram ao filme e da própria curadoria. Nosso maior desafio, agora, será entender como fazer distribuição e comercialização a partir daqui do Acre. 

Cine Set – Como foi a sua seleção para o personagem e de que forma você trouxe elementos da sua realidade para o filme? 

Gabriel Knoxx – A seleção para o personagem foi intensa. Participei com diversos atores profissionais com anos de teatro nas costas e eu estava lá com a minha passagem pela música; sou cantor, mas, tinha o sonho sim de atuar, participar de filmes e séries. Tive esta oportunidade, acabei me destacando e consegui o papel. 

“Noites Alienígenas” trouxe muitos elementos da minha realidade e da juventude em Rio Branco. Mostro isso no filme através de cada gíria, cada andar, cada música, além das próprias locações que representam isso, inclusive, cheguei a gravar em um beco em que morei a vida toda. 

Cine Set – Estamos acostumados a ver Rio de Janeiro, Nova York, Paris como cidades cinematográficas sem nem sempre notar como as nossas cidades amazônicas têm este mesmo potencial. Como foi ver Rio Branco na tela? O que mais te impressionou em relação a isso? 

Gabriel Knoxx – Não tenho nem como explicar como foi ver Rio Branco na tela. Meu Deus do Céu! Foi incrível poder levar um pouco da beleza do nosso Acre, do nosso Rio Branco para o mundo. Aquilo que mais me impressionou foi ver o potencial da nossa cidade na tela de cinema se igualando a estas cidades citadas, mostrando as riquezas da região.  

Cine Set – No recente curta amazonense “Terra Nova“, há uma sequência em que se ironiza como os artistas locais não são valorizados pela própria população. Isso se repete em Rio Branco? E você acha que “Noites Alienígenas” chegar tão longe em festivais internacionais e nacionais pode ajudar a mudar isso? 

Gabriel Knoxx – Isso, infelizmente, se repete bastante aqui no Acre também e acredito que aconteça Brasil afora. Vários ótimos artistas daqui não são valorizados, mas, este jogo é assim mesmo. O público sempre olha o que não é da casa; o que é de fora é sempre melhor, mais bonito. Somente se dá valor quando o artista vai embora da cidade. É um jogo que não dá para entender. Acredito, porém, que o “Noites Alienígenas” terá o potencial de mudar a visão do acreano do próprio povo acreano. A população daqui poderá olhar para o lado e saber que no seu Estado tem atores, diretores, músicos, poetas com talento incrível sem dever a lugar nenhum. 

Cine Set – Quais seus planos para a carreira de ator? Tem novos filmes, projetos para TV ou internet? 

Gabriel Knoxx – No momento, estou me especializando e na esperança do filme seguir sua trajetória nos festivais. Espero ter a oportunidade sim de participar de novos filmes, séries, o que aparecer de arte e cultura estarei disposto. Darei sempre o melhor de mim. 

Cine Set – Como foi a sua seleção para o personagem? E a parceria com a Gleice e o Gabriel? 

Adanilo – O Clemilson Farias faz a direção de produção do “Noites Alienígenas” e foi ele que me indicou. Daí o Sérgio de Carvalho, diretor do filme, entrou em contato comigo, enviei meu material, produzimos um vídeo com um dos textos do longa, fui aprovado. 

O trabalho com a Gleici e o Gabriel foi muito na parceria, conversávamos bastante, tivemos a preparação de elenco do Germano Melo, que nos aproximou ainda mais. Para ambos, era o primeiro trabalho audiovisual, e sempre tem aquela gana de estar começando, não tinham vícios de interpretação, isso é muito interessante. Particularmente, acho lindo observar a construção de cada ator. Além disso, eles me ajudavam a entender Rio Branco, os contextos locais, já que são de lá. 

Cine Set – O que você identificou de similaridades e diferenças da produção acreana e a amazonense? 

Adanilo – O que mais me chamava atenção era a arquitetura e a urbanidade de Rio Branco. Eu me sentia em Manaus, tantas eram as proximidades. Depois, a qualidade dos profissionais do Norte já é incontestável; estamos repletos de talentos por aqui, precisamos valorizar cada vez mais isso. Explorar nossas narrativas com gente nossa, ouvir e proliferar nossas vozes.  

Acabamos lidando com algumas questões em comum, como os custos amazônicos, ainda a ausência de algumas funções específicas por conta da defasagem na formação de profissionais, mas nada que nos impeça de fazer trabalhos de qualidade, como já está mais do que provado. Um desejo meu com certeza é estar em cada estado da Região Norte conhecendo o audiovisual desses lugares. 

Cine Set – O contexto indígena tem perpassado os teus trabalhos mais recentes como “521 Anos” e “Trovão Sem Chuva”. Aqui, você interpreta um jovem dependente químico assombrado pela ancestralidade. Gostaria de saber o que te atraiu ao desenvolver o personagem e os conflitos trazidos por ele.  

Adanilo – Sou nascido e criado na periferia manauara. Atuar num contexto periférico no Acre, me interessa porque entendo que um filme como “Noites Alienígenas” é um forte posicionamento contra o desamparo aos subúrbios nortistas, territórios indígenas, ainda que não sejam reconhecidos como tal. Precisamos falar dessa história que a gente já conhece, questões de educação, saúde, violência, preconceitos, que nos afetam física e psicologicamente.  

Um dos temas do filme, por exemplo, é a dominação das facções nos bairros pobres, a sedução aos jovens para esse universo horripilante. Infelizmente, quando eu chego na minha casa, no bairro da Compensa, em Manaus, sempre ouço histórias dos meus amigos de infância que foram mortos ou estão perdidos no tráfico. Poder colocar em discussão esses assuntos sempre vai ser uma escolha minha. A gente precisa rever os caminhos que estamos escolhendo como sociedade. Não criminalizar estes jovens é uma opção, oferecer oportunidades, acolher. 

Cine Set – Como você observa este novo olhar sobre o indígena feito pelo cinema brasileiro, especialmente, nas produções nortistas? 

Adanilo – Não falar sobre nós sem nós. Vejo que as produções audiovisuais brasileiras já entenderam isso. É um passo. Tem indígena em todas as funções do cinema, ator, produtor, roteirista, atores. É importante pensarmos em programas de formação indígena para estas profissões, nas aldeias, nas cidades, oportunizar. É reparação histórica! 

Falando em atuação, ainda nos falta tratar com mais naturalidade e menos clichês os atores e atrizes indígenas, saber que são capazes de dar conta de qualquer papel, que podem ser médicos, professores, advogados, engenheiros, sem necessariamente ter uma “questão indígena” por trás de tudo aquilo. Afinal, estamos inseridos em todos os contextos e não vamos deixar de ser indígenas, como pessoas pretas não deixam de ser pretas. Recentemente comecei a pensar: por que uma pessoa indígena ainda não protagonizou uma novela das nove na Globo? E reforçando, sem que “questões indígenas” girem em torno desse protagonismo. Pensando na relevância disso, nos damos conta do quanto ainda temos que trilhar. 

Nos últimos anos, os movimentos indígenas ganharam mais força no meio das artes, e isso é fruto do trabalho de todos que vieram antes, é importante que isso fique claro. Somos artistas desde sempre, e a arte na maioria das vezes nem se dissocia do resto, é parte do todo, do cotidiano, é cura, são os grafismos, a artesania. 

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