Alguns elementos das raízes da cultura rave encontram um inusitado espaço de debate do curta “Meu coração é um pouco mais vazio na cheia”, da tocantinense Sabrina Trentim. O mais gritante deles é, óbvio, a presença da música eletrônica, mas o apreço por cenários naturais como palco da festa e a comunhão entre o espaço e as pessoas se redimensionam na Amazônia. 

É o imaginário da selva que serve de fio condutor para a primeira metade do filme-ensaio de Trentin. O off contínuo trazido pela diretora parte da materialidade do rio como um mundo submerso de monstros reais (arraias, jacarés) ou imaginários (sentimentos, segredos e intenções submersas no inconsciente). 

Rio enquanto símbolo 

Tal como um dicionário de símbolos, o conceito de rio segue se desdobrando, assim como o próprio formato do curta. Este mistura imagens estáticas e em movimento para expressar o senso de fluidez e mudança constante que o rio carrega, tal como o processo de amadurecimento pincelado pelas asserções da narradora ao longo dos offs. Assim, o rio passa a ser também, uma corrente de vida e memórias. 

Seguindo esse fluxo, desembocamos então numa festa rave que acontece parcialmente no rio – um pouco em flutuantes, um pouco em embarcações de pequeno porte e um pouco com água batendo pela cintura, dependendo do gosto e temperamento de cada participante. O transe das batidas eletrônicas, a embriaguez animada e a apoteose da festa adquirem, na natureza, um caráter quase ritualístico. 

Levar-se pelo fluxo 

É algo que não deixa de ser curioso enquanto remodelação de um frenesi xamânico por um público majoritariamente caucasiano no meio da Amazônia. Assim, o que o documentário registra é, por si só, um remix de diferentes práticas culturais – das conexões únicas dos povos caboclos com a selva às raves originadas de uma subcultura em busca de conexão com a natureza e alternativas ao conservadorismo lá nos anos 1980. 

Tal leitura  é possível a quem conhece um básico da cultura rave e, por isso, sabe que ela não é apenas uma festa de música “bate estaca” e muita droga. Porém, tal possibilidade de entendimento se perde sem tal contextualização, que não é dada de forma gratuita ao espectador do documentário. A superfície desse fluxo, então, é encoberta pelas percepções sobre vida, memória e amadurecimento feitas pela diretora, expressas de forma poética no off dessa segunda metade do curta.  

Resumindo tudo isso, o texto soa, para o bem e para o mal, juvenil àqueles que não sabem muito bem como mergulhar nas águas de “Meu coração é um pouco mais vazio na cheia”. Na dúvida, apenas deixar-se levar pelo fluxo já vale a experiência.