O Mercado Audiovisual do Norte – Matapi teve Jorane Castro como uma das principais convidadas da edição 2019. Professora do curso em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Pará, ela conta com mais de 20 obras realizadas, entre documentários e ficção.
O maior feito da carreira veio com o drama “Para Ter Onde Ir”, produção que circulou em diversos festivais ao redor do planeta e rompeu mercados para o cinema paraense, chegando a ser exibido no Playarte do Manauara Shopping ao lado de blockbusters de Hollywood e comédias do cinema nacional.
No intervalo da rodada de negócios e da apresentação dela sobre a atuação do CONNE, entidade responsável por representar as produtoras e artistas do audiovisual das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, Jorane conversou com o Cine Set sobre o setor no Pará, a distância entre o audiovisual do Amazonas e do Estado vizinho, e os retrocessos do governo Bolsonaro.
Confira a entrevista abaixo:
Cine Set – Como está a cena audiovisual paraense na atualidade falando especificamente de produção?
Jorane Castro – Estamos vivendo o melhor momento do audiovisual paraense com produtoras se consolidando. A contribuição trazida pelo Fundo Setorial do Audiovisual, através da Ancine, levou muita gente a filmar.
Produtoras que trabalhavam antigamente com publicidade, hoje em dia, estão se voltado para trabalhar mais com conteúdo. Temos os profissionais que buscam fazer cinema mais autoral, outras realizam televisão, enquanto os alunos do curso de graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA) estão se organizando para fazer suas próprias produções. Pode-se observar também a organização de coletivos e da juventude negra para gravar nas periferias.
Acredito que este retorno virá, em breve, com seleções para festivais e muito mais. O problema é que não contamos com nenhum edital regular tanto no Estado quanto na capital. Acaba sendo difícil planejar um futuro do audiovisual paraense se não foi através do Fundo Setorial.
Cine Set – Manaus chegou a ter um curso de audiovisual na UEA com duas turmas formadas, porém, houve uma descontinuidade e hoje o curso está encerrado. E você esteve envolvida diretamente na criação do curso de Cinema e Audiovisual, da Universidade Federal do Pará. Como você observa o impacto deste curso tanto para o mercado quanto para o se pensar cinema no Pará?
Jorane Castro – A primeira turma entrou em 2011 com estes alunos se formando entre 2015 e 2016, logo, ainda é um processo recente. Mas, observo uma profissionalização do mercado com os estudantes interessados em construir uma estratégia de carreira para permanecer no setor. Também é possível sentir uma evolução na qualidade de técnicos, profissionais que estão no mercado.
Junto com isso, também acho importante que tenhamos um espaço de reflexão sobre o fazer cinema na Amazônia. Temos uma região complexa em desenvolvimento, geografia, da própria população e não somos as pessoas que mais filmamos; precisamos ocupar estes espaços.
Falo da região como um todo porque recebemos estudantes de outros Estados, principalmente, do Maranhão. Acredito nesta vocação de receber pessoas de outros Estados do Norte do Brasil enquanto estes locais não tiverem seus próprios cursos.
Cine Set – Uma parcela significativa do público ainda desconhece o cinema produzido pelos artistas do Amazonas. Vocês encaram o mesmo problema no Pará?
Jorane Castro – A distribuição é sempre um gargalo do cinema brasileiro. Convivemos também com este problema. A visibilidade para os nossos projetos ainda vai demorar um pouco. É difícil a gente ver. Mesmo assim, em Belém, há uma sala de cinema estadual e outra municipal voltada justamente para este circuito mais alternativo, de arte. Os três longas-metragens que dirigi foram lançados nestas salas e deu bom público.
Porém, ainda temos sim dificuldade de vencer a resistência para fazer as pessoas saírem de casa e assistirem a uma produção local. Temos que construir isso, pensar em como chegar neste público. Por enquanto, percebo que as pessoas se interessam, acham legal, mas, não tem o hábito de ir.
Cine Set – A política pública de regionalização do cinema nacional dos últimos anos permitiu, entre outras conquistas, filmes produzidos na Região Norte por profissionais locais. Para falar apenas de longas-metragens, tem as produções do Sérgio Andrade, aqui no Amazonas, e o “Para Ter Onde Ir”, o seu filme que até chegou a ser exibido aqui em Manaus. Como você acha que isso contribui a trazer novos olhares sobre o que ocorre na Amazônia e para as pessoas que vivem nela?
Jorane Castro – Vou te responder dando um exemplo: lá no Pará, nós temos um sotaque, diferente do amazonense, mas, que não é escutado em lugar nenhum. Logo, quando a gente começar a fazer filmes na Amazônia, as pessoas vão se reconhecer. Isso é importante demais na criação de identidade, autoestima. Há uma série de questões relativas a quem se assiste na tela.
Estamos acostumados a ver Nova York nos filmes do Woody Allen, Paris, ou seja, viajamos o planeta quando vamos ao cinema, enquanto, a gente não se vê na tela. Logo, é importante que nos vejamos assim como as paisagens, a luz da região, a cor da pele de quem mora aqui, além, claro, da narrativa que não é a hegemônica.
A questão não chega a ser regionalizar, mas, sim, nacionalizar. Antes, o cinema brasileiro ficava concentrado no Rio e em São Paulo, agora, está presente no país inteiro. O DOCTV foi o primeiro pontapé para este momento, pois, foi quando houve uma maior organização dos profissionais do setor das mais diferentes regiões. Era obrigatório ter filmes em todos os Estados.
Cine Set – Você acha que há distanciamento entre o setor do audiovisual da Região Norte, especialmente, entre Pará e Amazonas? Como você acha que isso pode ser fortalecido?
Jorane Castro – Neste momento, sinto que cada cidade está tentando estruturar sua lógica de produção. No Pará e no Amazonas, os profissionais estão buscando fazer seus projetos, mas, falta sim o diálogo. Lugares como o Matapi podem ajudar a diminuir esta distância, apresentando que é possível trocar, fazer co-produções e realizar projetos juntos.
Acho que, a partir deste mercado, podemos começar a pensar em criação de festivais ou outras alternativas para ficarmos mais próximos. A distância é maior pelo pensamento do que necessariamente pela geografia. Vemos poucas coisas de vocês e vice-versa.
Cine Set – Quais políticas adotadas pelo governo Bolsonaro mais te preocupam em relação ao audiovisual, especialmente, o feito aqui na região Norte do Brasil?
Jorane Castro – Há muitas questões preocupantes, mas, o que me chama maior atenção é o cerceamento da liberdade de expressão.
Com os argumentos econômicos, para mim, é possível convencer e sensibilizar de que não é possível mexer no setor. O Fundo Setorial do Audiovisual fomentou uma área que se fortaleceu neste começo de século, logo, temos um setor que está funcionando, gerador de 300 mil empregos, de ótimos profissionais – atores, diretores, roteiristas, técnicos de todas as áreas – representando 0,5% do PIB, com 12 mil empresas envolvidas, circulação financeira de R$ 25 bilhões por ano, salas de projeção.
Resumindo: o audiovisual conta com toda uma cadeia de produção. Temos uma estrutura de funcionamento sólida e não há como parar uma indústria desta qualidade. Para qualquer governo, seria muito incoerente acabar com um setor tão produtivo.
Por outro lado, não é possível que haja tantos retrocessos dentro do audiovisual como, por exemplo, não ter indução para que mais mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTs, estejam na frente e atrás das câmeras. Todo mundo precisa e tem que contar suas histórias. Sabemos que a estrutura da nossa sociedade é arcaica, violenta, machista, onde muita gente acha que pode resolver as coisas no grito e na bala. Não podemos deixar que a liberdade de expressão seja ameaçada.
Logo, estas são brigas mais difíceis de defender porque não há como argumentar com o outro lado e, talvez, seja por aí que tentem enfraquecer o nosso setor. Mas, resistiremos. A briga será longa.
Cine Set – Você está no Matapi representando o CONNE (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste). Dentro de tudo isso que você falou, como deve ser a atuação da entidade para evitar este retrocesso, principalmente, para regiões com o audiovisual em processo de desenvolvimento?
Jorane Castro – A CONNE representa 19 Estados e o Distrito Federal, o que acaba sendo uma área bem grande do Brasil com muitos produtores e agentes econômicos do cinema. A nossa briga principal é o respeito e a manutenção da lei que exige que o mínimo de 30% dos investimentos em editais seja direcionado para as empresas presentes nestas três regiões.
Cine Set – Por fim, gostaria de saber mais sobre o teu próximo trabalho. “Herança”, certo?
Jorane Castro – Estou lançando o documentário “Mestre Cupijó e Seu Ritmo”, selecionado na última edição do Festival de Brasília. Ano que vem, filmo outro documentário sobre a música paraense em geral, do carimbó de raiz ao canto lírico, para o Canal Curta e, no segundo semestre de 2020, farei um longa de ficção chamado “Herança”. Estamos no aguardo das liberações burocráticas da Ancine. Todos estes serão filmados em Belém.