Agendar entrevistas dos principais lançamentos do cinema brasileiro fora do eixo Rio-São Paulo nem sempre é fácil, especialmente, por conta dos grandes atores envolvidos em diversos projetos. Isis Valverde, por exemplo, não pode falar com o Cine Set sobre “Angela” por já estar nas filmagens da série sobre Maria Bonita no interior do Paraíba. Acontece, mas, não impede que tentemos. 

Foi na base da persistência que busquei uma entrevista sobre “Nosso Sonho – A História de Claudinho e Buchecha”. Sorte minha ter o apoio sempre solícito do Fernando Gomes, da Atômica Lab. Assim que pedi, ele informou que o diretor Eduardo Albergaria estaria disponível. Claro que dei aquela choradinha para falar com a dupla de protagonistas – Juan Paiva (Buchecha) e Lucas Penteado (Claudinho). E não é que deu certo?  

A sorte, entretanto, não acabou ali: a conversa com Eduardo e Juan foi simplesmente além de qualquer limite de tempo. Uma entrevista franca com ótimas histórias que durou incríveis 55 minutos. Aqui, você confere grande parte do bate-papo, mas, ainda guardamos mais para o podcast.  

Uma entrevista tão boa como o ótimo “Nosso Sonho – A História de Claudinho e Buchecha”. Confira abaixo:  

Cine Set – Pergunta clássica de início de entrevista: como foram os primeiros passos para “Nosso Sonho”? De onde surgiu a ideia para o filme? 

Eduardo Albergaria A ideia do filme surgiu em 2014. Na Urca Filmes, tínhamos um núcleo de criação e fizemos uma provocação: que história brasileira merecia ou precisava ser contada para chegar às telas de cinema? O Fernando Velasco, roteirista, sugeriu o Claudinho e Buchecha e logo ficamos todos entusiasmados, porém, por ser uma ideia tão boa e tão óbvia, veio um desalento quase que imediato, imaginando que alguém já havia pensado nisso e estaria desenvolvendo um projeto relativo ao tema. 

Mesmo assim, eu e o meu sócio, Leonardo Edde, fomos verificar e descobrimos que os direitos estavam livres. Decidimos, então, marcar uma conversa sobre o assunto com o Buchecha. Fomos a um restaurante para nos conhecermos e revelamos a intenção de fazer um filme, porém, deixamos claro que gostaríamos de ouvir aquela história da boca dele. 

O Buchecha foi extremamente corajoso e generoso aos nos chamar para a casa dele na semana seguinte. Naquela conversa comigo e o Velasco, “Nosso Sonho” nasceu. Lembro que estávamos na sala quando ele foi até ao quartinho de criação dele. O Buchecha trouxe uma caixa com amendoim torrado, o que me chamou muita atenção. 

“Vocês querem ouvir minha história? Minha história é essa…”, ele disse. A conversa durou três horas e, à medida em que contava, o Buchecha ia criando um elo com o amendoim torrado, o que me fez perceber que aquele alimento era uma espécie de personagem da história. Foi um dia muito emocionante; eu, o Fernando e o próprio Buchecha estávamos chorando ao final e dali foi o ponto de partida para o filme. Uma verdadeira catarse.  

Todo o esforço nosso ao longo deste período foi para fazer justiça a este relato corajoso de compartilhar a história de vida dele e do ‘faixa’. E um dos orgulhos que tenho foi uma conversa recente que tive com o Buchecha em que ele me disse ter se reconhecido o Claudinho, os demais personagens, todo o universo da história e a si mesmo no filme. 

Cine Set – O imaginário popular sobre o Buchecha, o que aparece dele na mídia, sempre foi de uma pessoa alegre, contente, animada, porém, “Nosso Sonho” mostra outras facetas dele – por vezes, mais sério, os traumas com o pai, a luta de conciliar os dois trabalhos. O que mais te chamou a atenção para fazer o personagem? Como foram as tuas conversas com o Buchecha? O que ele te falou? 

Juan Paiva – Eu não conhecia tanto a história do Buchecha antes do filme. Quando o Claudinho fez a passagem em 2002, eu tinha dois anos de idade. Na troca de ideias com o Eduardo, notei que, por trás da dupla com todo o sucesso, há seres humanos ali que ninguém imagina o que percorreram em suas trajetórias. O entretenimento e a diversão que os dois oferecem para o mundo é apenas a ponta do iceberg; há diversos assuntos poderosos por trás da fama. 

Entrei no filme enquanto finalizava a novela “Um Lugar ao Sol” e apenas ia absorvendo algumas coisas do que o Eduardo me falava, adicionando um ou outro elemento do meu ponto de vista no caderninho de anotações. Foi então que o Buchecha convida a mim, o Eduardo e Leonardo para um café da manhã na casa dele. Ali notei a personalidade dele: o encontro poderia ser em um restaurante, mas, o cara nos convidou para ir no lugar onde mora. Isso diz muito sobre ele e entrou também no caderninho (risos). 

A partir dali, o Buchecha começa a nos trazer para o universo familiar e profissional na casa onde morava. Observei o jeito respeitoso e dedicado dele. Estas coisas fui pegando para evitar a caricatura. Até cheguei a conversar com o Edu sobre a forma dele falar, de prender um pouco a boca, e o Edu pedia calma, dizendo que aquilo era apenas um detalhe e não o mais importante.  

O Claudinho o puxou para a carreira artística, enquanto o Buchecha trouxe o amigo para o universo do profissionalismo, mostrando que a vida na música ia para além do oba-oba e vinha carregada de muita responsabilidade. Este aspecto, aliás, eu trouxe para a construção do personagem para o filme. Fazer uma cinebiografia era algo que tinha muita vontade de fazer e foi bastante desafiador. Sempre quis realizar este tipo de obra para que o retratado se sentisse representado naquilo que construí. 

O Buchecha foi o personagem mais difícil para eu encontrar. Em uma ficção, você pode construir a partir de um pouquinho de cada pessoa, da sua imaginação. Agora, uma vida que existe e todo mundo conhece é de uma responsabilidade imensa, mas não uma pressão. Eu só acreditei e coloquei minha verdade ali.  

E o maior elogio que tive com “Nosso Sonho” foi da esposa do Buchecha: no início, ela tinha dúvidas se eu conseguiria chegar no ponto certo do personagem. Já durante o processo, ela virou e disse: “legal, você já está descobrindo um corpo diferente”. Eu só respondi: “é, pois é, tô conhecendo”.  

Agora, na pré-estreia, ela chegou em mim e falou: “olha, vim aqui não só te parabenizar, mas, também dizer que, vendo o filme, eu não sabia se era você Juan ou se estava tendo um encontro com o meu marido naquela época”. Foi a coisa mais linda e enriquecedora que recebi do meu trabalho. Isso dá um gás para continuar seguindo.  

Cine Set – Gostaria que você falasse sobre a abordagem em relação ao Claudinho. Em muitos momentos, o Buchecha cita ao longo do filme que o Claudinho era o seu anjo da guarda e a primeira que o Lucas Penteado aparece tudo se ilumina, ganha uma vitalidade, fora outras referências, de alguma maneira, mítica em relação a ele. Como foi chegar nesta decisão de ir por este caminho? 

Eduardo AlbergariaEste foi um relato do Buchecha dividido conosco nesta conversa de três horas de duração. Pelo talento poético que ele possui de processar a vida através dos versos e cantos, a história narrada da vida dele era uma espécie de fábula. Fora que ele textualmente falou para a gente: “o Claudinho foi um anjo que passou pela minha vida. Era o meu ‘faixa’, mais do que irmão”. Considero deslumbrante esta maneira do Buchecha em contar a trajetória dele e do Claudinho. A fábula é um gênero capaz de dialogar com todo mundo e com a realidade.  

Porém, lá no início, até pela função que exercia, precisei ser cético de alguma maneira, desafiando esta ideia original, logo, fui procurar explicações para tudo o que ocorrera. Foi bonito demais ver isso não se concretizar, pois, de fato, existe algo de mágico que acontece na vida de todos, notado por nós durante a pesquisa. Todas as pessoas que ouvi contando sobre o Claudinho falavam deste ser luminoso. Isso nos convenceu de que não era necessário explicar tudo o que ocorre no filme por simplesmente não ter explicações.  

Já no final após ter tudo filmado e montado, eu mostrei trechos do filme para a viúva e a filha do Claudinho para mostrar minha versão dele. Elas ficaram impressionadas e emocionadas. Daí, a Vanessa (ex-esposa do cantor) saiu e, de súbito, foi pegar uma caixa enorme com todo o arquivo privado, confirmando mesmo a versão da pessoa iluminada, deste anjo que tantos falavam dele. 

Juan Paiva – Curioso que o Lucas Penteado também é este ser luminoso com alto astral de uma energia positiva. Um cara com muita vivência e uma luz própria imensa. Pelo que percebi nestes anos de amizade, observei que ele é um cara que consegue pegar o limão e transformar em uma super limonada. Esse é o Lucas que conheço. 

Cine Set – Muito da força de “Nosso Sonho” está na dobradinha entre você e o Lucas na forma como vocês fecham esta parceria que casa igual Claudinho e Buchecha. Como foi a troca entre vocês dois e como se explica uma química dessas? 

Juan Paiva Não é trabalho nenhum! Eu e o Koka (Lucas Penteado) nos conhecemos em São Paulo durante os preparativos para “Malhação: Viva a Diferença”. A nossa energia bateu na hora. Ele veio alto astral falando: “ei, negão! A comunidade lá em casa já te conhece da novela. Você tem que ir lá na minha quebrada”. Também já o convidei para vir na minha. 

O maior trabalho quando nos reencontramos para o filme foi o estudo da técnica de como eram o Claudinho e o Buchecha. A nossa amizade é muito sincera, coisa de irmão, uma conexão forte mesmo. 

Cine Set – O funk sofreu e ainda sofre muito preconceito dos mais diversos – há até quem deseje criminalizá-lo. Diante disso, o que a história de Claudinho e Buchecha e, consequentemente, o filme podem ajudar a diminuir este tipo de estupidez? 

Juan Paiva – Claudinho e Buchecha foram muito importantes e serviram de inspiração para a evolução do funk. Apesar dos meninos de hoje serem até mais ousados, a geração dos dois ajudou a acabar com o olhar estereotipado em relação às favelas. Nestes locais, vivem pessoas cada uma com seus sonhos, mas, ainda há um olhar distante sobre isso. Tem gente que nem se permite chegar perto para entender o funcionamento das favelas.  

Se for para falar de violência, ela existe em qualquer lugar, infelizmente. Você sai de casa, tudo pode acontecer. Porém, sinto sim que há uma ignorância racial e social. Há uma frase do (rapper) Filipe Ret inspiradora: “se os meus inimigos soubessem o quanto me inspiraram, ficariam do meu lado”. 

Sou favelado. Sempre fiquei dividido entre a música e atuação. Cheguei a produzir funk também, já fui DJ de uma rádio comunitária no Vidigal e já toquei em bailes com meus amigos. Tudo isso por pura diversão, pois, é um momento de extravasar pelo fato da vida ser bastante dura.   

Logo, é uma besteira, uma ignorância este preconceito com o funk. Sinto que caminhos para lugares interessantes, mas, ainda vejo retrocessos. Acredito que esteja relacionado à falta de educação e de acesso à cultura. Se você trocar ideia com qualquer criança de uma comunidade, é possível entender que ela apenas deseja se divertir. Ela não quer te fazer maldade nem nada do que é seu. Somente o direito de viver bem, ajudar sua família e realizar seus sonhos.  

Eduardo Albergaria Concordo totalmente com tudo o que o Juan falou. Não faz o menor sentido o Brasil olhar desta forma para o funk, um monumento da cultura nacional e nosso principal produto de exportação. As pessoas acham que a realidade pauta o simbólico, porém, acredito no contrário. Em “Nosso Sonho”, fizemos o esforço consciente de representar uma comunidade longe dos símbolos de violência. Não há armas no filme, mas, sim a arte como mola propulsora de cidadania e consciência. Os conflitos destes personagens periféricos passam pelas suas subjetividades, humanidades e não por algum ato violento. 

Cine Set – O cinema brasileiro vive um momento dramático sem a cota de telas, muitos filmes sequer conseguindo espaço para serem exibidos. Como é lidar com essa situação prestes a lançar “Nosso Sonho”? 

Eduardo Albergaria A nossa identidade coletiva passa pelo território simbólico. Acho uma mentira quem diz que o povo brasileiro não vai ao cinema porque não quer. A população deseja muito ir às salas, se reconhecer nas telas e ouvir suas histórias, mas, para isso, é necessário que ele tenha esta chance. Para tanto, há uma cadeia enorme de decisões necessárias para isso ser possível. A cota de tela é a última da série de medidas estratégicas e coletivas que envolvem a nação e soberania brasileira neste sentido. 

Quando você assiste a um filme brasileiro em um cinema, você se reconhece como parte de um universo maior de uma nação. Considero a disputa pela cota de tela como algo que pauta a nossa realidade. Ter este mecanismo não é um favor, mas, sim um direito de nos reconhecermos.  

Há quem diga que um filme como “Nosso Sonho” não precisa de cota de tela. Discordo totalmente, pois, vejo sim como uma obra que traz uma universalidade capaz de quebrar as barreiras, mas, ele precisa ter uma chance de “respirar”. Agora se isso acontece com a gente, imagina um filme menor? Precisamos da diversidade do cinema brasileiro. Tenho certeza absoluta que iremos reconquistar a cota de tela. É um investimento para o futuro. 

Juan Paiva Também acho a cota de tela fundamental. Infelizmente, não é falta de vontade que faz as pessoas se afastarem dos filmes nacionais, mas, as circunstâncias que as impedem. As prioridades financeiras atrapalham, afinal, quando chega o final de semana, as pessoas se planejam para fazer determinada atividade naqueles dias, sabendo que no próximo ficará mais difícil repetir ou realizar algo novo. O dinheiro não dá para o lazer devido às demais contas do dia a dia. 

Fora que é injusto colocar uma produção brasileira, 13h, em uma quarta-feira, um horário em que as pessoas estão trabalhando. Como apresentar um filme desta forma? Logo, as pessoas não vão conhecer o seu próprio país.  

Se não fosse o ‘Nós no Morro’, onde faço teatro e tenho acesso a arte, provavelmente não seria ator. Nem teria um sonho nem acreditar em nada. Parece que tudo vem contra para você não ter acesso à cultura. A culpa não é do povo, das pessoas que não se interessam, mas, infelizmente, a realidade é outra.