Muitos são os documentários que, a serviço de seu caráter informativo, enrijecem os aspectos relativos ao uso da linguagem fílmica; constroem-se em cima de uma vontade de serem documentos fieis à linearidade na narrativa que tomam como verdade, deixando pouco espaço para a poesia que envolve a pretensa história. Por sorte, esse não é o caso de “Janis: Little girl blue” (2015).

O documentário de Amy Berg abriu, na última terça-feira (13), a parceria do Cine Set com o projeto Cinema de Arte, da rede Cinépolis, em Manaus. Foi um dos filmes eleitos pelo público local para serem exibidos por essas bandas, e a presença do público não decepcionou: vimos casa cheia e, mais que isso, uma audiência consumida em sua atenção à obra, tarefa não muito difícil, graças ao caráter emocional que ela imprime facilmente para o espectador.

Dentre imagens que remontam principalmente ao Texas e à Califórnia dos anos 1950-1970, o filme nos leva a uma viagem íntima ao universo da cantora Janis Joplin (1943-1970). O longa já começa bem sucedido ao equilibrar-se entre o tal caráter informativo, trazendo dados obrigatórios para qualquer pessoa que se interesse em conhecer algo da artista, e o aprofundamento em aspectos pessoais dela enquanto indivíduo, o que se fortalece com o vasto material de arquivo utilizado no longa.

As fotos e as cartas à família, algumas inéditas, são, nesse sentido, fios condutores essenciais para os registros mais básicos, como as filmagens de grandes shows e relatos de amigos. É através deles que a psique de uma personagem quase fadada ao caricato se renova aos olhos de novos e antigos fãs, já que a narrativa definida por Berg torna possível ver as várias camadas da mulher conhecida por sua atitude contestadora, voz inigualável, roupas espalhafatosas e pelo flerte fatal com a bebida e as drogas.

A psicodélica Janis consegue, assim, ser complexificada, mostrar-se como um ser humano de facetas diversas e com níveis de intensidade para além da total entrega que vemos em suas performances, que também não escapam no longa. Essa busca por fugir do óbvio dentro do documentário vem também em detalhes como a escolha da voz de outra roqueira, Cat Power, para os offs das cartas de Janis.

Inadequação como força motriz

A inadequação de Janis em relação aos padrões socialmente impostos é também outro elemento que guia a narrativa escolhida por Berg. Em muitos momentos, o filme frisa, sem apelar a discursos hoje já considerados pré-fabricados, sobre como a cantora foi contra várias convenções da época: Janis quebrou normas do que era considerado belo, de como deveria se relacionar com homens e mulheres, de como as mulheres eram vistas no mundo do rock, enfim, de comportamento em geral.

O interessante é a maneira como o filme atualiza o retrato da jovem rebelde a partir de trechos de cartas e outros escritos. Coloca-se Janis num eterno conflito entre a vontade de ser transgressora e de ser aceita, conflito este que tem uma conexão direta com os tempos e a juventude de hoje, ainda que num contexto bastante diverso do que vimos no filme. Em dado momento, um dos entrevistados vai direto ao ponto, dizendo que Janis vivia a duplicidade de querer ser ela mesma e assumir o papel que a fama começou a lhe impor, e que nem sempre correspondia a esse eu.

Falando em contexto, é impossível não se envolver com a maneira como Berg reconstrói os passos de Janis a partir das experiências desta ao sair do Texas e partir para San Francisco. A diretora consegue transparecer como a efervescência cultural da mítica cidade influenciou tantos artistas, incluindo a cantora, assim como também consegue dialogar com as demandas e anseios da juventude de hoje por transformações sociais, tudo embalado por trechos de performances marcantes de Janis. É interessante também como, dentro desse escopo, o filme consegue englobar tanto shows essenciais como a performance em Monterrey como também gravações caseiras e registros de estúdio que não sobreviveram à edição final dos álbuns, trazendo sempre algo informativo, mas também original.

É a partir dessa conexão de passado e futuro que “Janis: Little girl blue” se coloca como um filme extremamente jovem. E como todo jovem, tem sua dose de melancolia. As repetidas imagens de estradas, trens, pontes e outros elementos que remetem a um caminho sendo trilhado (ou construído) entrecortam a narrativa da vida da cantora e várias de suas cartas, dando um senso ao mesmo tempo de fuga e evolução. Nesse interim, as inseguranças da cantora são expostas a partir de vários relatos, mas nunca a colocam numa posição de simples vítima do sucesso ou dos homens, fato que vemos com mais veemência em obras similares como o documentário “Amy” (2015), de Asif Kapadia.

A mulher e a música

Ainda que a figura de Janis surja por vezes no filme mais como a lembrança de outros que como personagem ativo em fala, tem-se sempre a impressão de ver uma mulher completa, com coragem em alguns momentos e medo em outros, doçura e firmeza impressas no mesmo ser humano. Nesse sentido, mesmo quando aborda os aspectos mais polêmicos de sua carreira e vida pessoal como o uso de drogas, sua bissexualidade, relacionamentos fracassados e relação com a cidade natal, o filme não soa sensacionalista. A passagem da cantora no Rio de Janeiro, por exemplo, é marcada por um sentimento de alegria e esperança, ainda que marcasse uma tentativa dela se livrar do vício em heroína.

Quem espera um aprofundamento maior nas músicas de Janis, no entanto, não tem em “Little girl blue” o material ideal. Dentre tantas ideias bem sucedidas que o longa traz, o destaque à música em si não é uma delas, ainda que existam trechos de shows no filme com os quais facilmente a audiência no cinema ficou arrepiada. O máximo de destaque que vemos a uma canção é o momento, já próximo da reta final do documentário, em que o compositor Kris Kristofferson comenta sua satisfação com a interpretação de Janis para a música “Me and Bobby McGee”, ou no trecho em que ela e a banda trabalham gravando a canção “Summertime”.

Ainda assim, “Janis: Little girl blue” mostra como um documentário consegue equilibrar com sucesso momentos mais expositivos com outros de maior poeticidade e, de quebra, chamar o público para as salas de cinema. Com uma personagem fascinante, seria preciso um esforço extra para estragar uma das histórias mais míticas do mundo do rock…