“Ela” (2013) pode ser classificado como um daqueles filmes com uma temática cada vez mais atual. Em um período relativamente curto desde o seu lançamento, chega a ser assustador presenciar os avanços da tecnologia e, mais ainda, ponderar o que ainda está por vir.
Antes de analisar alguns dos muitos aspectos psicológicos do filme, gostaríamos de fazer um merecido reconhecimento ao Joaquin Phoenix, que interpreta Theodore – o protagonista em Ela. Na paixão por filmes iniciada em nossa infância, dentre as centenas de filmes a que assistíamos, lembramos claramente do ator ainda adolescente, como o filho caçula de Diane Wiest em “Parenthood – O tiro que não saiu pela culatra” (1989). Paralelamente, a carreira do irmão River, decolava. Em uma figura meio andrógina, Joaquin na obra supracitada já se destacava como um promissor ator. Onze anos depois, seu maior destaque viria como o sadista Commodus em “Gladiador” (2000) e a merecidíssima indicação a melhor ator coadjuvante.
A versatilidade do ator sempre foi notória. Mesmo antes de sua mais marcante atuação na obra-prima “Coringa” (2019), em “Ela” Joaquin mostra nu e cru o retrato da solidão do homem moderno.
O filme começa com Theodore fazendo uma declaração de amor tão pura e verdadeira para uma pessoa que nem está ali presente – ele escreve cartas para terceiros – e já ficamos envolvidos com a naturalidade que Phoenix tem em expressar emoções. Ele é tão sincero que não há como não sentir uma conexão com a personagem já nos primeiros minutos da obra. Marcado por papéis complexos, atormentados e excêntricos na maioria das vezes, aqui vemos Phoenix como uma pessoa comum do dia-a-dia e nos identificamos com ele ao decorrer da estória.
DESACORDO INTERNO
Theodore lida com a solidão posterior ao divórcio recente e com uma imensa dificuldade em reconectar-se afetivamente com outra pessoa. Fechado e inseguro na sua vida pessoal, ele se liberta emocionalmente através das cartas que escreve no trabalho. Vulnerável, ele busca essa conexão perdida em salas de bate-papo e encontros através de aplicativos.
Em Ela, não há – o que é genial – nenhum questionamento sobre como as pessoas levam suas vidas. Andam apressadas, cada uma conversando sozinha com seu próprio aparelho de celular. Esse quadro da individualidade está muito bem retratado na cena em que Theodore está no metrô. Mesmo estando perto uma das outras, as pessoas não se interagem. Bem familiar e moderno, não?
De acordo com a Psicologia Humanista da Abordagem Centrada na Pessoa, idealizada pelo norte americano Carl Rogers, a incongruência pode ser definida como um desacordo interno, uma desintegração entre uma representação da experiência na consciência e desalinhada com o corpo. Quando temos tal desajuste – e todos nós temos com frequência, em grau variado –, acabamos fazendo escolhas não tão saudáveis assim. É assim que vemos Theodore: um adulto que, ainda não tendo superado o trauma da separação, acaba atraindo qualquer coisa para supostamente tapar o buraco do vazio da solidão deixada pelo fim de um relacionamento. A dor do luto de mãos dadas com a solidão pode ser uma equação catastrófica.
A psicanálise vai teorizar muito bem essa idéia de que somos seres sempre faltantes, e a tentativa de que o outro nos preencha é sempre um engodo e um golpe narcísico. Exemplos concretos em “Ela” são o trágico-cômico encontro com uma possível companheira representada por Olivia Wilde (o que nos faz lembrar e muito da característica de encontros via aplicativos de relacionamentos) e a própria escolha pelo sistema operacional Samantha.
O AMOR LÍQUIDO DE THEODORE
Arriscando-nos a entrar no campo da Psicologia das Cores, o uso das mesmas não nos parece desproposital, mas sim muito bem aplicado. O vermelho, cor quente que pode simbolizar paixão, é como uma sombra de Theodore. A cor está em seus flashbacks no sofá, no travesseiro, na faixada do prédio e nas suas camisas. A cor do sistema operacional adquirida por Theodore também é vermelha. Estaria o amor ao seu lado? Por outro lado, cores frias (especificamente o azul) acompanham Theodore cidade afora, enfatizando a solidão e a melancolia, tão presentes em sua vida.
Ainda dentro desta perspectiva, é possível fazermos um paralelo entre Theodore e Amy (Amy Adams), sua única amiga mais íntima e que também está passando por problemas de relacionamento. Ambos parecem ter medo do amor, naquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), define por amor líquido. Amor líquido é um amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação.
Através do breve relacionamento com Samantha, Theodore cresce como pessoa e como ser humano; passa a compreender melhor o mundo, a si mesmo e as suas emoções. Reconhece seus erros do relacionamento anterior, pedindo desculpas à ex-mulher em uma carta profundamente tocante e sincera, escrita à mão. Tem pela frente a continuação da sua evolução pessoal: a reconexão afetiva com outras pessoas e a reorganização de seus sentimentos.
O nascer do sol ao final de “Ela” nos dá a idéia de recomeço, dessa reconexão – tanto para Theodore quanto para Amy, que sentam juntos no terraço do prédio. Os dois olham para o horizonte e Amy coloca a cabeça no ombro do amigo… Seria essa uma oportunidade para que ambos redescobrissem o amor, na forma do outro? Ou seria o aprofundamento de uma longa e verdadeira amizade? De uma maneira ou de outra, Theodore acaba traçando a escrita da própria vida.