Disponível para streaming na Mubi Brasil.
Primeiro longa-metragem de ficção do cineasta Fradique, um dos expoentes do cinema contemporâneo independente da Angola, ao contar com uma produção inteiramente nacional, “Ar-Condicionado” surge, nas palavras do seu realizador, da necessidade de fazer cinema de ficção no seu país de origem. Desse ímpeto, nasce um filme que busca dar nome a esse lugar para além do passado doloroso, mas evidenciar o potencial criativo e de fazer arte.
Em meio a uma onda de calor e ares condicionados que misteriosamente despencam dos edifícios e preocupam as autoridades, a empregada doméstica Zezinha (Filomena Manuel) e o segurança Matacedo (José Kiteculo) transitam pelo centro caótico de Luanda na incumbência de consertar o ar condicionado quebrado do seu desagradável chefe. Nessa saga, eles interagem com o ecossistema que o cercam e seus segredos.
A FORÇA DE LUANDA
Uma ode à cidade e, sobretudo, às pessoas que a formam e dão vida, “Ar-Condicionado” centraliza a relação com o espaço público e até que ponto ele serve a quem o ocupa. Nas andanças de Matacedo, conhecemos mais sobre o íntimo do protagonista e, principalmente, desvendamos o seu entorno. A capital Luanda cheia de prédios que, em contrapartida, reflete a independência tardia e os poucos anos passados desde o fim da guerra civil. Um lugar marcado tanto pelo passado como pelo presente que, ao mesmo tempo, é cenário e personagem.
Assim como a metrópole e os indivíduos se mostram imprescindíveis um ao outro, aqui a estética ajuda a compor a narrativa e contar a história. A fotografia, em alguns momentos cinza e outros colorida e viva, engrandece o “quê” de realismo fantástico presente no enredo: os picos de surdez de Matacedo que curiosamente o permite se comunicar por telepatia com os vizinhos; ou a “máquina de memórias” construída com sucata nos fundos de uma velha loja de eletrônicos, ganham profundidade por meio dos movimentos e da luz.
Já a trilha sonora, de autoria da musicista angolana Aline Frazão, fortalece a desconformidade com o abandono social e a decadência da relação dos indivíduos com o meio pouco ou nada projetado para atender suas necessidades. Os moradores invisíveis ao Estado, mas a força motriz que faz a cidade girar, atravessam a cotidiano implacável ao ritmo do caos urbano e das músicas perfeitamente encaixadas aos propósitos do longa.
ANGOLA E SUA RECONSTRUÇÃO
Nessa lógica, o objeto que dá nome ao título vai muito além de mero recurso, é símbolo da desigualdade social pulsante e condutora de toda a narrativa. E fala a uma sociedade que despreza quem a sustenta. Todos esses elementos juntos criam uma experiência fílmica rica e envolvente, cativante em todos os detalhes.
Talvez o único tropeço seja o pouco tempo para explorar tudo aquilo que o filme propõe. Os poucos mais de 70 minutos de duração, parecem deixar algumas ideias esvaídas no ar, sem meio e nem fim. A estilo também entrega a formação em cinema feita nos Estados Unidos. Contudo, esses pontos se tornam um pormenor diante da magnitude do trabalho de Fradique. Lançado em 2020, “Ar-Condicionado” é sobre o calor inebriante de uma Angola viva em busca de reconstrução. É criativo, político e sonhador.