Foi emblemático, ao final da minha sessão de Vidro, que muitos espectadores não se levantaram durante os créditos, como se estivessem esperando uma cena pós-créditos dos filmes do Marvel Studios. Ora, Vidro é sim um filme de super-heróis, um bem maluco e diferente, conduzido pela visão do roteirista/diretor M. Night Shyamalan. É também a culminação de um segmento da sua obra, o terceiro e definitivo capítulo de uma trilogia conectada que se iniciou com Corpo Fechado (2000) e prosseguiu com Fragmentado (2017) numa surpresa ao final deste que ligava os dois filmes.

Quando fez Corpo Fechado, Shyamalan estava vindo da aclamação mundial de O Sexto Sentido (1999). Talvez por isso, sua história de origem de um super-herói tenha deixado espectadores coçando a cabeça na saída do cinema: Era uma história muito diferente, e o grande público ainda não estava acostumado com o conceito de super-heróis no cinema. O filme estreou poucos meses depois de X-Men: O Filme (2000), que inaugurou a atual onda heroica nas telas dos multiplexes mundiais. Já Fragmentado, a sua história de origem de um super-vilão, nasceu em meio à retomada da carreira do diretor, que passou alguns anos no purgatório após provocar mais risos involuntários que aplausos com algumas histórias sobre damas na água, ventanias assassinas e trabalhos como pistoleiro de aluguel em Hollywood.

Vidro chega no momento em que o público já está mais do que acostumado com super-heróis e acaba propondo uma nova visão para o tema. É o filme no qual o herói de Corpo Fechado, David Dunn (Bruce Willis) encontra o vilão Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) de Fragmentado. Tanto Dunn, que opera há alguns anos na Philadelphia como “o Vigilante”, quanto Crumb, o psicopata das 24 personalidades, são jogados no mesmo hospital psiquiátrico onde está o “Sr. Vidro”, Elijah Price, o fascinante mentor/vilão de Corpo Fechado vivido por Samuel L. Jackson. No hospital, os três passam a ser tratados pela doutora Staple (Sarah Paulson), que acredita que eles sofrem de um delírio. Para ela, não existem super-heróis. Em alguns momentos, ela soa como um daqueles críticos de cinema pedantes que joga no lixo qualquer filme com um personagem mascarado lutando.

Shyamalan, no entanto, está firmemente do lado do conceito super-heróico. De fato, ele o relaciona com o tema recorrente em grande parte da sua filmografia: os esforços para acreditar em si mesmo e aprender a viver com seus dons aparecem em O Sexto Sentido e Corpo Fechado e acabam sendo levadas às ultimas consequências aqui. O diretor também parece determinado a não tornar o filme uma experiência, digamos, tão fácil para o grande público. O meio do filme é muito “tagarela”, consistindo de cenas até meio chatas de diálogos entre os personagens. Apesar da promessa de lutas super-heróicas, o filme tem poucas cenas assim, e Shyamalan as filma de forma inventiva, com ângulos estranhos. É um filme onde decisões inteligentes, como a de ter um esquema de cores para cada um dos três personagens, e a de incluir cenas cortadas de Corpo Fechado de forma orgânica na história, convivem com o estranho senso de humor de Shyamalan – o mesmo que nos deu momentos bizarros envolvendo a ventania assassina há alguns anos. O humor aparece com algumas interações entre os personagens e certos momentos de exagero na atuação de McAvoy.

Bem, Corpo Fechado também era esquisito, nem de longe tão palatável quanto O Sexto Sentido ou Sinais (2002), os maiores sucessos do cineasta. Vidro é um filme de Shyamalan no verdadeiro sentido do termo: A meia hora final traz nada menos que três (!) plot twists, reviravoltas de roteiro que, sem dúvida, devem deixar muitos espectadores confusos e/ou decepcionados. Particularmente, gostei deles: as três reviravoltas, embora sejam inegavelmente esquisitas, se coadunam bem entre si e se relacionam tematicamente com a ideia central dos filmes anteriores da trilogia.

Com certeza, Vidro não convida ao consenso. Mas é a expressão de uma visão artística muito particular, feita numa época em que cada vez mais filmes convidam o público a pensar de onde vem a nossa necessidade por heróis e porque as narrativas de super-herói se tornaram tão importantes nos últimos anos. M. Night Shyamalan celebra a individualidade, as características inatas dentro de cada pessoa que as tornam “diferentes”, “esquisitas” e, às vezes, maiores que a vida. A alma do filme é o Sr. Vidro, trazido à vida no desempenho divertido e cheio de nuances de Samuel L. Jackson – dá para notar que ele gosta do personagem e estava ansioso para vivê-lo de novo. Como o arquiteto do terceiro ato do filme, podemos vê-lo como análogo de Shyamalan: ele se diverte com o caos e a loucura, mas não se esquece de valorizar a capacidade do ser humano de ser mais e aceitar sua natureza verdadeira.

E, de novo, consegue puxar o tapete debaixo de nós depois de tudo, criando uma obra que, provavelmente, ainda iremos debater por alguns anos. Resumindo: em Vidro, Shyamalan encerra uma fase da carreira e uma trilogia sendo mais autor do que nunca e voltando a acreditar nos seus “poderes”, para o bem e para o mal. O resultado é fascinante.