Em determinado momento de “Cake – Uma Razão para Viver”, Jennifer Aniston delira vendo um gambá enquanto mergulha numa piscina. Entre imagens saturadas de verde e com uma leve trilha eletrônica ao fundo, a personagem da eterna Rachel do seriado “Friends” tenta refletir sobre a sua situação – ela é sobrevivente de um acidente de carro que custou a vida de seu filho e lhe deixou com dores crônicas. A cena é uma das várias que apelam para o multissensorial para dar conta do espectro das emoções da protagonista, o que não é nada mal para um filme bem rechaçado por servir tão somente como um veículo para Aniston.

De um ponto de vista de publicidade, o maior problema com filmes-veículos é fazer a conversa sair do filme como um todo e se ater a somente um elemento dele, uma atuação. É por isso que “Cake” provavelmente vai parar nos anais cinematográficos por ter representado a maior chance que Jennifer Aniston teve de ser indicada ao Oscar, o que é uma pena pois estamos lidando com um filme redondinho, com talento de sobra mesmo nos papeis mais diminutos, e que, ainda que não traga absolutamente nada de novo em termos de narrativa (nem todo filme pode ser “Cidadão Kane” e tudo bem, de verdade), ele é honesto em suas intenções, respeitoso com seu público e uma experiência agradável e emocionante no todo.

O roteiro, assinado por Patrick Tobin, dá a Aniston um humor extremamente ácido e é seu trunfo nos conectar com uma personagem da qual sabemos muito pouco. Sua Claire Bennett é uma mulher manipuladora, inconsequente, e machucada de uma forma da qual a maioria das pessoas não se recupera. Sua interação com a empregada/governanta/santa Silvana rende muitas das risadas do filme, pois elas são contrapontos mútuos: Claire é cética, ateia, desesperançada e Silvana, ainda que viva uma vida difícil (e infelizmente pouco explorada na tela), é um poço de cuidado e esperança.

Esse tipo de contraponto narrativo é óbvio e, verdade seja dita, o roteiro apela para soluções fáceis várias vezes. A mudança de comportamento de Claire que abre o terceiro ato, um tanto quanto sem razão, parece só cumprir sua função para avançar a trama e é o maior exemplo disso. Sua interação com o marido (Sam Worthington) de uma colega que se suicidou (Anna Kendrick, perfeita) cativa, mas é o tipo de coisa que parece só funcionar nos filmes.

No entanto, ele aborda questões marginais com uma naturalidade que faz com que o conjunto se beneficie. A maior delas é o atestado de Los Angeles como uma cidade verdadeiramente latina: quase 50% dos diálogos de Silvana são em espanhol e Claire tem um sexo desesperado com um limpador de piscinas hispânico, por exemplo.

Em vez de diminuí-los, Tobin os humaniza, dando voz ao passado da empregada durante uma visita das protagonistas à cidade mexicana de Tijuana e, minutos antes, tocando na ferida do “privilégio branco”. Ao se mostrar nervosa antes de contrabandear medicamentos controlados para os EUA, Claire é questionada pelo farmacêutico mexicano: “Você é uma mulher branca e rica. Você já foi pega fazendo alguma coisa errada?”.

Para além do roteiro, a trilha eletrônica e minimalista de Christophe Beck parece uma versão genérica de coisas tentadas por Brian Eno e Moby no passado… mas funciona! A fotografia, assinada por Rachel Morrison (que recentemente fez a fotografia de “Fruitvale Station”), também é incrivelmente competente, abusando de câmeras na mão, muita luz e momentos com uso favorável de saturação de cores (como na cena da piscina que comentei no início do texto). Ela não está muito preocupada com sutileza e, de fato, chama muita atenção para si mesma (o filme tem sua dose de travelling backs e flares), mas não atrapalha o entendimento da história.

Agora, consegui evitar isso até agora, mas não acho que posso fazer justiça ao filme sem falar especificamente de Aniston. Vamos lá: estaríamos falando mais sobre “Cake” se ele fosse protagonizado por Julianne Moore #prontofalei. Não estou comparando as duas em termos de talento (Moore pertence a uma constelação que lhe é própria), mas Aniston, como Moore, entrega tudo em uma atuação selvagem, surpreendente e cheia de nuances.

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Muito foi falado sobre o seu abandono de maquiagens para o filme (à exceção de suas cicatrizes prostéticas), mas ele nem de longe é o traço mais marcante de Claire. Aniston emociona com uma personagem difícil e cuja dor é o que nos prende ao filme e, ao mesmo tempo, o que nos repele dele. Ser cercada por Kendrick, Felicity Huffman e William H. Macy no elenco de apoio tampouco atrapalha.

De modo geral, “Cake” é um filme que não apresenta dificuldades para o público geral, tem uma história emocionante, é ancorado por atuações de destaques, e tem uma sensibilidade que compensa por certos pecados do roteiro. Consuma sem analgésicos.