Que o cinema tem muito de indústria, todos sabem. Seja em Hollywood, Mumbai ou no Rio de Janeiro, os filmes precisam sair aos montes, pra justificar a formação de pessoal e de equipamento, e, o mais importante, precisam dar lucro, ou a coisa toda desanda.

Mas nem por isso, esse esquema industrial precisa degenerar em falta de criatividade e mérito artístico. Pelo contrário: a marca de alguns dos maiores diretores da história é justamente a de fazer triunfar a experiência elevada da arte, nesse meio tão preso a cifras e anseios voláteis que é o cinema. Steven Spielberg e Alfred Hitchcock são considerados os emblemas máximos dessa união “arte + comércio”, mas eu acrescentaria um terceiro nome à lista: Ridley Scott.

Se o mestre inglês não é tão bem sucedido (ou lembrado) quanto os outros dois, isso se deve muito mais à situação infeliz da Sétima Arte, nas décadas de 1980 e 90, do que a uma suposta inferioridade deste em talento e imaginação. Quando acerta, Scott nos devolve àquele maravilhoso mundo idealizado, onde um talento criador profundo e original não descarta a experiência mais acessível do público, unindo no mesmo (alto) plano os dois pólos, entretenimento e arte – Richard Donner (Os Goonies, Máquina Mortífera) e Wim Wenders (Paris, Texas, Asas do Desejo), para ficarmos em dois nomes que representaram o máximo desses conceitos na década de 80.

Apesar dos pesares, Ridley construiu um dos legados mais importantes das últimas décadas, com produções onde um visual singular, elaboradíssimo, e um pendor para o épico definiram novos padrões para o cinema de fantasia, ao mesmo tempo em que deram dignidade e vigor imerecidos a enredos policiais mais modestos.

Ainda um criador relevante para o cinema atual, Ridley Scott continua alimentando altas expectativas nos apaixonados por essa arte, ao mesmo tempo em que sua obra anterior começa a ser reavaliada com justiça pela crítica.

Os Duelistas, de Ridley Scott

As origens: a paixão pelo cinema, a publicidade e Duelistas (1937-1977)

Ridley nasceu no distrito de South Shields, no nordeste da Inglaterra, uma região industrial em decadência, cujas paisagens de concreto e aço marcariam a fundo a imaginação do futuro diretor de Alien e Blade Runner. Desde cedo apaixonado por artes plásticas, o jovem Scott passou boa parte da infância seguindo as andanças do pai, marinheiro mercante que teve postos no País de Gales e na Alemanha.

Formado em belas-artes pela Royal School, Ridley exerceu a vocação primeiro na TV. Contratado como designer de produção pela BBC, no início da década de 1960, ele foi galgando degraus na emissora, até chegar à direção de seriados. Em 1968, ao lado do irmão Tony (futuro responsável por sucessos como Top Gun – Ases Indomáveis e Chamas da Vingança) e dos também cineastas Alan Parker (O Expresso da Meia-Noite) e Hugh Hudson (Carruagens de Fogo), Ridley fundou a Ridley Scott Associates (RSA), produtora de filmes e comerciais, por meio da qual passou a atuar também na publicidade. A empresa está de pé até hoje, tendo criado alguns dos comerciais mais aclamados da TV inglesa, além de garantir a vários membros da família Scott uma iniciação no mundo do audiovisual.

Após anos angariando o respeito do meio artístico e dominando os truques do métier, Scott pôde enfim se lançar à grande paixão de sua vida: os filmes. Começando de maneira brilhante com Os Duelistas (1977), um violento conto de vingança e honra envolvendo dois oficiais do exército napoleônico (Keith Carradine e Harvey Keitel), o prodígio da TV mostrou a que veio: o visual meticuloso, que, apesar do baixo orçamento, deixaria o Kubrick de Barry Lyndon orgulhoso; o tom épico, que impulsiona a trama por caminhos cada vez mais aflitivos; e a precisão na construção do enredo e dos personagens. Exibido em Cannes e aclamado à época como uma estreia arrasadora (o que era mesmo), Os Duelistas atraiu a atenção dos grandes estúdios americanos, assegurando ao novato inglês uma entrée de gala no mundo da produção profissional.

A fase “lendária” de Ridley Scott: Alien, Blade Runner e A Lenda (1979-1985)

A fase “lendária”: Alien, Blade Runner e A Lenda (1979-1985)

Confirmando as grandes expectativas ensejadas pela estreia, o filme seguinte de Scott seria mais um prodígio de ambição e criatividade. Alien – O 8º Passageiro (1979) marca também a primeira incursão do diretor pela ficção científica, gênero ao qual Scott deu talvez suas contribuições mais duradouras. Iniciando com muito sucesso a saga da militar Ellen Ripley (Sigourney Weaver, no papel que fez sua carreira), um Scott ainda intocado pelas pressões da indústria soltou a imaginação, criando um novo repertório visual para o gênero.

Usando sua formação em belas-artes, o diretor firmou parceria com o artista suíço H. R. Giger, cujas criações fascinantes, de formas longilíneas, em nada lembram os designs quadradões consagrados pelo sci-fi de (e até) então. Atmosférico, compassado, explorando ao máximo o suspense, Alien continua um dos filmes mais elaborados e assustadores do estilo, além de reinar superior às ótimas sequências dos anos seguintes, assinadas por nomes como James Cameron, David Fincher e Jean-Pierre Jeunet.

Para os fãs de Scott, o filme marca ainda o início da fase mais memorável de sua carreira, completada por outros dois filmes que são, talvez, as obras mais aptas a lhe garantir a imortalidade.

Blade Runner – O Caçador de Androides (1982) é o ponto alto da filmografia de Scott, e uma das obras supremas da ficção científica em todos os tempos. Visualmente revolucionário – sua ideia de uma megalópole decadente, dominada pela presença maciça do comércio, encarnado nos anúncios gigantes dos arranha-céus – e de uma profundidade rara em qualquer cinema, com sua reflexão desiludida sobre mortalidade, lembranças e essência, o filme é a realização mais completa do talento de Scott, mas eis que a indústria – sempre ela – resolveu pesar a mão sobre o artista.

O enredo é simples. Rick Deckard (Harrison Ford) é um expert no rastreio e identificação de androides, usados no futuro para exercer atividades nocivas aos humanos. Indistinguíveis do resto de nós, e com inteligência cada vez mais sofisticada, eles começam a questionar sua função de joguetes, colocando a existência humana em risco – e Rick, que havia abandonado a vida de caçador, tem de voltar mais uma vez à ativa. O problema é que o filme, elaboradíssimo nas referências estéticas e dramáticas, era sombrio demais para a Warner, distribuidora americana, que esperava uma obra de ação mais convencional. Resultado: Ridley teve de submeter sua obra-prima a um corte mais “acessível”, além de refilmar o final, para deixá-lo… feliz. Desnecessário dizer que o filme foi mal, sob o ponto de vista do grande público, mas a obra ganhou status de cult com o passar dos anos, reputação essa que só aumentou com o lançamento da versão original, na década de 90. Se tiver que assistir a um único filme de Ridley Scott na vida, que seja este.

O diretor, porém, ainda tinha bastante lenha pra queimar. Prova disso é o seu trabalho seguinte, o igualmente cult e subestimado A Lenda (1985). Trazendo os novíssimos Tom Cruise e Mia Sara (a Sloane de Curtindo a Vida Adoidado) numa ambiciosa trama de fantasia, o filme não atinge as mesmas alturas transcendentais de Blade Runner, mas talvez seja ainda mais surpreendente, com sua ambientação de conto de fadas sombrio, muito mais próximo dos mitos da tradição nórdica, pagã, do que do encanto infantil de um Hans Christian Andersen, além de trazer um Satã complexo, atormentado e até, quem diria, romântico (Tim Curry, sob a maquiagem sensacional de Rob Bottin). Como seria redundante elogiar, mais uma vez, os visuais fantásticos (sequência do vestido dançante!), resta afirmar, mais uma vez, a importância e o encanto deste filme, ainda à espera da devida reavaliação dos críticos. Eu vos peço: dêem uma chance a A Lenda. As imagens deste filme são daquelas coisas verdadeiramente irrepetíveis na arte.

Thelma & Louise, de Ridley Scott

Talento confinado: de policiais medianos à epopeia de Thelma & Louise (1987-1991)

Após amargar duas bilheterias decepcionantes (A Lenda deu um prejuízo e tanto: 9 milhões de dólares), Ridley, para se manter viável, teve de se submeter ao cinema mais rasteiro e comercial. Nos anos 1980, como hoje, isso queria dizer filmes de ação simplórios, com o mínimo de trama e o máximo de perseguições e tiros. Ainda que seja curioso observar o estilo lento, atmosférico do diretor adaptado a filmes estilo “Tela Quente”, sob o ponto de vista artístico, Perigo na Noite (1987) e Chuva Negra (1989) são deprimentes, pouco mais do que o trabalho de um hack qualquer. Chuva até que se sai melhor, com suas tomadas luxuriantes de Osaka, cidade japonesa vibrante e colorida, cujos prédios lembram os arranha-céus de néon de Blade Runner. Mas só nos interessa, mesmo, o que Ridley fez depois.

Esse depois atende pelo nome de Thelma & Louise. Quando nem crítica nem público já esperavam muita coisa do diretor, esse filme despretensioso, mas que atinge a grandeza de uma epopeia, nos atingiu em cheio. Trazendo a história de amizade e reinvenção das personagens-título, interpretadas por Geena Davis e Susan Sarandon, a obra reafirmou o estilo épico e a força visual de seu criador, produzindo um sucesso – alívio – instantâneo. Público reconquistado, crítica também – tanto que a Academia de Hollywood indicou Ridley pela primeira vez à láurea de Melhor Diretor. Apesar de brilhante, Thelma, em face do que Scott faria depois, foi um falso alvorecer.

Até o Limite da Honra, com Demi Moore, de Ridley Scott

Luta pela relevância: os difíceis anos 90

O segundo filme de Ridley na década de 1990 é também o seu último bom – a coisa é grave assim. Com um novo projeto bem ao estilo do diretor, o épico 1492 – A Conquista do Paraíso (1992), que reconta a jornada de Cristóvão Colombo (Gérard Depardieu) no descobrimento da América, Scott pôde investir suas habituais criatividade e ambição, características lamentavelmente ausentes dos trabalhos seguintes.

Tormenta (1996) e Até o Limite da Honra (1997) não são filmes de todo desprezíveis. Ambos mexem com elementos reconhecíveis na filmografia do diretor – no caso, a aventura em dimensões grandiosas (Tormenta) e o interesse por personagens femininos fortes (Até o Limite…) –, além de esbanjarem sua indubitável competência. Mas são tão desprovidos de ambição genuína, tão desinspirados, que acabam entre os pontos mais baixos da obra de Ridley, só um pouco acima dos policiais medianos dos 80’s. Dado que 1492 também era um filme imperfeito – seu roteiro é bem menos complexo e interessante que o de seus outros épicos –, chegamos à conclusão de que a década de 90 foi um período bastante problemático para Ridley, a ponto de indagarmos se os seus melhores anos tinham mesmo ficado para trás.

Gladiador, de Ridley Scott

A grandeza reencontrada: de Gladiador em diante (2000-)

A resposta veio na forma – memorável, luxuriante – de Gladiador (2000). Resgatando, em plena forma, o diretor visionário de Blade Runner e A Lenda, o filme devolveu ao épico a dignidade e o fôlego que o gênero não via desde o início da década de 60. Na verdade, a saga do general-tornado-escravo Maximus (Russell Crowe, outro ator fortemente identificado ao cineasta) talvez seja o maior exemplar do estilo, ao lado de Spartacus (1960), de Stanley Kubrick.

Com fotografia, efeitos, roteiro e elenco primorosos (Joaquin Phoenix, outra “revelação” fantástica de Scott), o filme marcou época, além de consagrar definitivamente o mestre inglês, que, mesmo não levando o Oscar, fez do seu filme o grande triunfo cinemático daquele ano. Desta vez, não foram a crítica e as plateias que redescobriram o diretor, mas ele próprio: na esteira do sucesso de Gladiador, um rejuvenescido Ridley vem emplacando vários hits, ainda que nem sempre à altura do artista vigoroso daquele último clássico.

Alguns dos projetos em que Scott andou se metendo, na verdade, resvalam na ruindade: Um Bom Ano (2006), uma tentativa de comédia romântica epicamente sem ambição; O Conselheiro do Crime (2013), onde nem toda a estilização visual do mundo é capaz de salvar um roteiro sem alma; e Prometheus (2012), quase um plágio de si próprio, reciclando ideias, conceitos e até planos do Alien original. Outros são ideologicamente confusos – Falcão Negro em Perigo (2001), filme de guerra em que cenas de grande comoção visual não compensam o retrato vilanizador que a trama faz dos antagonistas somalis. Outros, ainda, são apenas bons, sem conseguirem resistir à memória – Hannibal (2001), sequência modesta de O Silêncio dos Inocentes (1991); Rede de Mentiras (2008), suspense com Leonardo DiCaprio e Russell Crowe; ou ainda o recente Êxodo: Deuses e Reis (2014), que fecha de forma decepcionante a trilogia épica informal de Gladiador e Cruzada (2005).

Em compensação, temos vários exemplares magníficos do fogo que Ridley, em seus melhores momentos, é capaz de conjurar: a envolvente sátira aos filmes de assalto Os Vigaristas (2003); o retorno ao épico, no mesmo plano superlativo de Gladiador, com Cruzada (mas só na versão Director’s Cut – o filme sofreu a mesma experiência emasculadora de Blade Runner, inacreditáveis 23 anos depois); os mergulhos completamente diversos, mas igualmente envolventes, de O Gângster (2007), que vai fundo nas agruras das populações negras marginalizadas, encarnadas no traficante Frank Lucas (Denzel Washington), e de Robin Hood (2010), subestimada visita à Idade Média e ao mito do popular herói inglês.

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Michael Fassbender em Prometheus, de Ridley Scott

Certo, os últimos filmes de Scott – Prometheus, O Conselheiro do Crime e Êxodo – não foram lá essas coisas. Mas não faltam evidências para crer, e até aguardar, que o genial filmmaker britânico nos arrebate de novo, que reconcilie os cinéfilos e o grande público na mesma experiência deslumbrante de visual e emoção, imaginação e intelecto, marca de suas grandes obras até aqui. Arte e comércio, produção industrial e individualidade criadora: por alguns e maravilhosos momentos, esses conceitos irremediavelmente divorciados se reencontram, se inspiram e ganham novo sentido. Ridley Scott, e pouquíssimos mais, consegue produzir essa mágica. The Martian, com Matt Damon, vem aí (estreia marcada para novembro deste ano). Estou contando os dias.