Alfonso Cuarón é o tipo de cineasta versátil que consegue fazer qualquer filme e ainda imprimir uma marca inegavelmente sua. Nesse sentido, ele pode ser uma versão contemporânea e mais autoral do grande Robert Wise (“A Noviça Rebelde”, “Amor, Sublime Amor”). Isso permite com que embarque desde franquias de fantasia (“Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”) a distopias sombrias (“Filhos da Esperança”) até encarar grandes filmes de ação (“Gravidade”) sem perder a identidade.

Essa tensão praticamente desaparece em “Roma”, novo projeto do cineasta, que levou o maior prêmio no Festival de Veneza deste ano e chega a maior parte dos espectadores mundiais como parte do catálogo da Netflix em dezembro.

Primeiro projeto de Cuáron rodado em espanhol e no México em 17 anos, é fácil entender porque “Roma” está sendo vendido como o seu filme mais pessoal. A história de uma família de classe média alta em meio ao turbilhão político da capital mexicana no início da década de 1970 inclui um alter ego para o diretor (um personagem secundário na trama), mas se foca na criada Cleo (Yalitza Aparicio), que vive na casa de seus empregadores e acompanha todas as transformações ao seu redor em primeira mão.

Por outro lado, é difícil compreender qual é o interesse da gigante de streaming em distribuir um filme tão insular para além do óbvio prestígio. “Roma” demanda atenção completa em sua delicadeza e não parece o filme que se beneficia da experiência doméstica, porém, continua a escalada ascendente da Netflix em direção aos níveis mais altos do universo cinematográfico. A vitória do filme em Veneza, um festival que, ao contrário de Cannes, tem apoiado muito a gigante do streaming, só reforça isso.

Uma das explicações, no entanto, pode ser justamente o apelo internacional do filme. Apesar de abordar uma trama decididamente mexicana, há uma universalidade na provação da vida de Cleo, interpretada à perfeição por Yalitza Aparicio. Nela e em seus silêncios, vemos uma vida à margem, constantemente próxima do centro da ação, mas, raramente parte dele.

“Roma” não se exime de tratar de questões de classe e raciais ao abordar a sua história. De origem indígena e pouca educação, ela é um alvo fácil das intempéries da vida, incluindo um romance destinado ao fracasso com um garoto local e a erosão do seio familiar que provém seu sustento. O trunfo da produção é pintar sua resiliência como algo poético, algo que Aparicio traduz com muito pouco – e, por isso, a atriz não-profissional merece todos os títulos de “revelação” que vierem em sua direção.

Enquanto todos esses temas podem parecer inéditos para plateias internacionais, o gosto dele para os brasileiros, especialmente, aquelas que têm acompanhado os maiores expoentes do nosso cinema nos últimos cinco anos, pode parecer um tanto quanto insípido.

O cinema nacional tem explorado a relação entre o microcosmo da classe média e a convulsão do mundo externo de maneira exímia em filmes como “O Som ao Redor”. Já o choque social entre empregados e empregadores no seio doméstico tem um exemplar fantástico (e mais bem-sucedido) em “Que Horas Ela Volta?”. Esses precedentes levam a comparações não muito lisonjeiras que tiram uma porção significativa do frescor do longa de Cuarón, mas, não anulam o cuidado e a sensibilidade mostradas nele.