AVISO: o texto traz SPOILERS

Você deve conhecer aquele meme de “Meninas Malvadas”: “eu estava obcecada, passava 80% do meu tempo falando de coisa x e nos outros 20% torcia para que alguém falassem pra eu falar mais”. Essa fui eu no último mês em relação a “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”. E, nesse texto, destaco quais foram os cinco motivos que me levaram a me apaixonar por essa narrativa e revê-la tantas vezes.

 1 – uma história com começo, meio e fim

A história de como Charlotte chegou ao Reino Unido para casar-se com o rei e tornou-se a majestosa rainha casamenteira de “Bridgerton” é bem amarrada, sem a necessidade de temporadas complementares que justifiquem sua forma de governar ou como trata as pessoas de sua corte.

“Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” discute um ponto central que é a consolidação da linhagem de George III, por isso a montagem passeia entre presente e futuro ou passado e presente – dependendo do seu ponto de vista – para mostrar o pesadelo da rainha alemã de não ter descendentes que continuem a dinastia Hannover após a morte de seus 15 filhos. Uma preocupação válida considerando a fragilidade da linha de sucessão entre o marido de Charlotte e Vitória.

Em paralelo, acompanhamos sua dificuldade em adaptar-se a nova cultura e como isso afetou o entendimento de certa forma, do papel que deveria exercer como monarca consorte, incluso a perpetuação da linhagem real. Vemos uma Charlotte impetuosa, voluntariosa, mas, ao mesmo tempo, carente e condescendente com a situação que lhe é imposta pela família real britânica.

As novas camadas de sua história são importantes para a compreensão da construção de sua liderança e ainda nos apresentar George e o tocante romance que os envolve. Por isso, o final de “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” conecta todos os pontos de presente e futuro, visto que o roteiro consegue tanto dar conta de apresentar uma solução para a sucessão – com a gravidez da esposa de Eduardo, ou seja, rainha Vitória a caminho – quanto nos mostrar como o sentimento entre os monarcas ainda perdurou apesar de todas as intempéries. Os pezinhos se aproximando ao final é só um resquício da solidez do relacionamento que vimos ao longo dos seis episódios.

2 – A construção de relacionamento

Uma vez que já comentei sobre o final emocionante – pena que as camas contemporâneas não nos permitem entrar debaixo delas -, é preciso salientar que parte de sua sensibilidade e significância ocorrem por rememorar cenas icônicas vivenciadas no decorrer da narrativa, algo que acontece com certa frequência no decorrer de “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”. 

O primeiro encontro do casal, por exemplo, quando a ainda princesa planeja pular o muro para fugir do casamento é constantemente citado, uma maneira de relembrar quem são, dado ser este um momento de liberdade e naturalidade entre os dois, como se fossem dois jovens sem a pressão imposta pelo nascimento e os acordos políticos, apenas George e apenas Charlotte. Para o público, essa cena também é importante porque nos permite conhecer a personalidade de ambos e entender um pouco da dinâmica do casal; a rainha como uma força da natureza e o rei sendo seu admirador e observador atento. 

Importante perceber ainda como o roteiro arquiteta o relacionamento deles dentro da discussão política. A trama social está ali tangível e a beira de um colapso que avança ou se interrompe conforme o plot do casal real, sendo este também o motivo da existência de dias pares e de dias ímpares. 

Por fim, há também uma química gritante entre Índia Amarteifio e Corey Mylchreest, que torna todas as declarações entre eles apaixonantes seja ele apenas dizendo o quanto a esposa é bela, ela admirando suas mãos de fazendeiro ou a pulsante cena em que se declaram com todas as letras. Há tantas camadas no relacionamento deles, que poderia fazer um texto apenas sobre isso. 

3 – As tramas paralelas

Algo que também torna “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” fechada em si e bem pontuada é o quanto as tramas paralelas existem em função da narrativa principal. Nesse aspecto, duas histórias se destacam: a de Lady Danbury e dos mordomos reais. 

Enquanto a trama dos Danbury literalmente serve a principal no quesito político-social, por ser a aplicação do Grande Experimento, conseguir discutir a questão racial sem argumentos idealistas de que os novos nobres seriam aceitos passivamente pela corte e ainda pontuar como nasceu o relacionamento entre a rainha e sua dama de companhia; Reynolds e Brimsley são literalmente o espelhamento de seus suseranos: brigam, mas se amam. Se distanciam, embora queiram estar juntos. E é incrível como roteiro constrói sua relação de forma sólida para que também torçamos pelo casal tanto quanto torcemos pelos monarcas. 

4 – Mulheridade Negra

No livro “Olhares negros: raça e representação”, bell hooks fala sobre como as mulheres negras se vêem nas artes e mostra também comportamentos subversivos para lidar com as expressões artísticas que tem pessoas brancas como o padrão. Conforme assistia “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”, me recordava de suas palavras e de sua busca por uma mulheridade negra sólida que também pudesse inspirar  meninas de cor a se identificarem com o que viam em tela. 

Charlotte chega para se juntar a um time de monarcas com apenas Tiana e Ariel de Halle Bailey. Sua presença forte, sem ser grosseira ou posta como vilã, e o olhar de desejo, carinho e admiração que recebe de George preenchem, de algum modo, a ausência de representações verossímeis de mulheres negras na TV/streaming. Demorei a me reconhecer como uma mulher negra e, hoje, sei que parte disso se deve à falta de personagens com quem me identificar. Talvez, em algum grau, eu veja na rainha alemã traços de quem eu era na sua idade ou de quem sou hoje, motivo que também me prendeu tanto a essa narrativa. 

Devo dar créditos a essa conquista também a Shonda Rhimes. Como uma showrunner negra, ela insere elementos que contribuem para essa feminilidade ancestral. Primeiramente, pela presença da própria Agatha Danbury, que é uma pessoa racializada o que a leva a lutar não só por si, mas também pelo seu povo. Há também a escolha de paletas de cores e vestidos que acentuam a ancestralidade negra e a beleza tanto de Charlotte quanto de Danbury. Neste aspecto, me chama atenção, por exemplo, a escolha dos vestidos de casamento; enquanto Charlotte faz opções por roupas ousadas e que combinam com sua posição, Augusta tenta subjugar a nora por meio da vestimenta. Ainda bem que o vestido majestoso ganha ao final. 

Há algum tempo, vi um vídeo que discutia porquê nos seriados da Disney havia poucas atrizes negras como protagonistas, entre os vários motivos, se falava ainda da ausência de profissionais que pudessem cuidar do cabelo e maquiagem do elenco negro. O oposto é o que vemos em “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”: embora boa parte do penteado seja peruca, é interessante o quanto eles agregam o cabelo crespo e escolhem diversos formatos que se alinham também conforme o estado de espírito das personagens. 

Por fim, não poderia deixar de citar as escolhas para a trilha sonora. A minissérie repete um feito que deu certo em “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”, me refiro a criação de arranjos de músicas pop para o clássico, o que nos permite termos versões de “Halo” e “Deja vu” de Beyoncé, “If I ain’t got you” de Alicia Keys, “Nobodys gets me” de Sza e a atemporal “I will always love you” de Whitney Houston. Perceba que todas são músicas interpretadas por mulheres negras; isso me faz pensar que bell hooks estaria contente de ver uma obra em que a mulheridade negra realmente acontece. 

5 – O olhar feminino

Não é só a mim que “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” gera identificação, a linguagem escolhida pela série consegue dialogar muito bem com o público feminino. Algo latente no universo de Bridgerton. 

Há algum tempo escrevi o quanto Matt Ruskin teve um olhar sensível e disruptivo em “O estrangulador de Boston”, o mesmo se observa na direção de Tom Verica. Ele não apenas conhece o ambiente de sua história, uma vez que também dirigiu episódios da série sobre a família de Anthony, mas também por trazer características que valorizam as personagens femininas sem objetificá-las. 

As cenas de sexo nunca expõem o corpo feminino, por terem também no set profissionais específicas para coreografarem esses momentos, tornando-os mais confortáveis para os atores. Percebe-se a busca por torná-las mais íntimas e, por conseguinte, mais atrativas para o público feminino. Há um destaque igualmente para os toques em mãos, nos braços e rostos que por tanto tempo alimentaram a imaginação dos fãs de literatura vitoriana, vide uma das melhores cenas de “Orgulho e Preconceito”. 

Outro ponto que compõe esse olhar é a vulnerabilidade em torno do protagonista masculino. O personagem é construído com dubiedade nos primeiros episódios, ora é o último romântico e encantador, ora é babaca e egoísta. Escolhas as quais escondem o tormento imposto em sua vida e as torturas que se submete para ficar com seu grande amor. Um homem másculo, mas frágil e que, quando permite que sua debilidade seja vista, se torna alguém normal, “apenas George”. Seria um homem por quem também vale a pena lutar? 

Poderia falar mais coisas que me encantaram em “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”, embora acredite que essas sintetizem o que tem me incomodado nas últimas semanas. Talvez a melhor parte seja que a narrativa funciona como história isolada, não precisa assistir “Bridgerton” para que se compreenda a discussão em tela, assim como a série principal não depende dos acontecimentos apresentados no spin-off . De qualquer forma, ainda bem que Charlotte não pulou o muro.