Particularmente, adoro o termo nordestern, que designa o gênero de filmes do cinema brasileiro ambientados no sertão nordestino, que fazem uso de características e tropos do western, o bom e velho faroeste norte-americano. De O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto, passando por Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, documentários e obras mais modernas até o impacto recente de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, o cenário do nordeste brasileiro é completamente próprio para histórias de bangue-bangue, mitológicas e de grandes emoções, tal e qual os gringos mostraram para o mundo.

Adoro o nordestern porque ele representa, na minha visão, uma das grandes características do cinema: a mistura, o “sincretismo” de manifestações artísticas e de formas de contar histórias que acabam influenciando outras e dando origem a coisas novas.

E agora, vem se juntar ao gênero a ótima, incrível série Cangaço Novo, da Amazon Prime Video. Ambientada no sertão do Ceará, é uma saga de crime e fortes emoções, não muito diferente de obras televisivas que podemos chamar de neowestern, como Breaking Bad ou Sons of Anarchy. Cangaço Novo é Shakespeare no sertão com sabor brasileiro, é pop, emocionante e tão boa que é absolutamente fácil de maratonar – uma sensação que, confesso, fazia tempo que não experimentava com uma série nova.

Épico NO SERTÃO

A série conta a história de Ubaldo Vaqueiro, que trabalha como bancário em São Paulo e está vendo o pai adotivo definhar num hospital. Um dia, recebe uma carta e vai à cidade (fictícia) de Cratará, no sertão cearense, para verificar a situação a respeito da herança do pai biológico. Lá, ele encontra as duas irmãs, Dinorah e Dilvânia, e descobre – ou seria, redescobre? – a ligação da família com o crime. Não demora muito, ele testemunha um assalto a banco, quase morre, e então resolve ajudar o bando da irmã no próximo roubo. Ele vai também se envolver com a complicada situação política da região, não menos criminosa.

Ao longo de oito episódios – que quase não evocam a sensação de “encheção de linguiça” presente em muitas séries atuais – os roteiristas, produtores e elenco de “Cangaço Novo” criam um panorama épico de cidades do interior, políticos corruptos e relações familiares conturbadas. As paisagens quase alienígenas da região são usadas com grande efeito em alguns momentos, e as cenas de ação e de assaltos são eletrizantes, filmadas com uma câmera na mão nervosa, planos-sequência bem articulados, e montadas com precisão. Fábio Mendonça, com experiência em outras séries como “A Vida Secreta dos Casais” e “O Doutrinador”, dirige os primeiros quatro episódios, e Aly Muritiba, de Para Minha Amada Morta (2014) e Deserto Particular (2021), comanda os quatro últimos.

CONFIANÇA NA PROPOSTA

Para além da ação, o que também impressiona em Cangaço Novo é a sensação de autenticidade presente nos episódios: as locações são reais, as situações e as pessoas retratadas parecem com as que vemos no Brasil de hoje, e o elenco predominantemente nordestino dá vida à série e ancora a trama grandiosa na realidade da história.

Nomes como Hermila Guedes e Marcélia Cartaxo já têm seus talentos comprovados e fazem ótimos trabalhos aqui, mas são os desempenhos dos pouco conhecidos Allan Souza Lima, como Ubaldo, e de Alice Carvalho, como Dinorah, que mais impressionam: ele, como uma represa de emoção que, aos poucos, aceita seu destino e papel de mito naquela região; e ela, como uma verdadeira força da natureza, ameaçadora e imprevisível, e que também acaba aceitando os próprios atos, e também o irmão. E afinal, esses são os nomes principais que se destacam, mas não há uma única nota dissonante no elenco como um todo.

Claro, a história em si trata de um velho dilema humano: afinal, o que é mais importante na constituição de uma pessoa – a sua natureza ou o local e as circunstâncias de sua criação? A forma como o protagonista, o herói – ou seria um anti-herói? – lida com seu dilema é o material do qual vários dramas televisivos já foram feitos. Mas essa narrativa se encaixa de modo orgânico no contexto brasileiro e do nordestern, e “Cangaço Novo” é tão ambiciosa e confiante na sua proposta que consegue até encaixar uma participação especial do cangaceiro Lampião em dado momento, e faz isso funcionar.

Aqui e ali, há uma pequena escorregada – um ladrão que chama o nome de um comparsa durante o roubo e nada acontece; ou um evento importante na vida de uma personagem que é somente mencionado, mas não de fato mostrado. Mas são detalhes, diante das grandes qualidades do seriado: Cangaço Novo já é uma das melhores séries do ano, é acessível, bem escrita e com uma visão dramática clara, e volta a mostrar o nordestern para o mundo, como várias as obras do gênero já o fizeram. Que venha a segunda temporada.