Fora do celuloide, fantasmas causam mais drama do que horror. “All of Us Strangers”, novo longa do cineasta britânico Andrew Haigh (“45 Anos”), dá voz a vários fantasmas, entre eles, a orfandade precoce e o medo de intimidade. Exibido no Festival de Londres após estreia em Telluride, o filme entrega um conto de luto, paixão e esperança – e é um dos melhores filmes do ano.  

“All of Us Strangers” acompanha o escritor Adam (Andrew Scott, da série “Fleabag”) enquanto navega duas situações peculiares em sua vida: o nascente romance com o vizinho Harry (Paul Mescal, de “Aftersun”) e a reaproximação com os pais (Jamie Bell e Claire Foy). O detalhe? Seus pais estão mortos há 30 anos – e esse reencontro misterioso com o passado mexe com a perspectiva do presente.  

A produção marca dois retornos para Haigh: ela traz o diretor de volta para as telonas depois de seis anos de trabalhos televisivos e retoma a preocupação com os relacionamentos queer dos dias atuais – tema que não explorava desde o fim de sua série “Looking”, em 2016. 

Escrito por Haigh, o roteiro ignora o viés sobrenatural do romance de Taichi Yamada em que se baseia e faz do protagonista um gay, transformando um conto fantasmagórico em uma meditação sobre os abismos geracionais entre pessoas que se amam e sobre como a experiência gay mudou nos últimos 40 anos. 

AURA DE CLÁSSICO 

Parte da razão pela qual o filme funciona tão bem vem do seu específico senso de tempo e lugar: as referências à banda Frankie Goes to Hollywood (“The Power of Love” é uma peça-chave aqui) e à epidemia da Aids pintam “All of Us Strangers” como uma tentativa da geração de gays que cresceu na Inglaterra dos anos 80 (como o diretor) de entender sua relação com o amor – seja romântico ou familiar. 

Essa decisão permite uma série de potentes interações: a conversa entre Adam e Harry sobre o atual uso dos termos “queer” e “gay” expõe as diferenças, mas ambos são homens à deriva, tentando lidar com a solidão da vida londrina. Conforme eles se aproximam, as imagens do diretor de fotografia Jamie D. Ramsay, com flares abundantes, luz suave e transições leves dão ao longa um ar de sonho. 

No entanto, o coração de “All of Us Strangers” bate ainda mais forte nas cenas entre Adam e os pais. Quando ele sai do armário para a mãe, por exemplo, ela se mostra nervosa, temendo que o filho fique sozinho e ostracizado. “É diferente hoje em dia”, ele rebate. A plateia, sabendo como Adam se isola em seu apartamento, tem toda a razão para se perguntar se ele acredita no que está dizendo. 

Para plateias que fazem parte desse demográfico, a delicadeza e destreza com que a trama amarra seus diversos argumentos já dão a “All of Us Strangers” uma aura de clássico – mas o filme também dialoga facilmente com os fãs de romances e de dramas familiares, independente de sexualidade. Querer paz com seus fantasmas e uma vida menos assombrada não tem a ver com ser gay; tem a ver com ser humano.