Como os advogados do julgamento no centro de “Anatomy of a Fall”, os espectadores da produção francesa ficam encarregados de reconstruir a verdade sem vê-la. O novo filme de Justine Triet, vencedor da Palma de Ouro – prêmio máximo do Festival de Cannes – e exibido no Festival Internacional de Karlovy Vary deste ano, é um astuto e envolvente suspense com todo o potencial de encontrar públicos para além do circuito de arte.  

Nele, Sandra (Sandra Hüller) é uma escritora alemã que vive com o marido francês Samuel (Samuel Theis) e o filho Daniel (Milo Machado Graner) em um chalé nos Alpes. Quando ele aparece morto com um ferimento grave na frente da casa da família, a esposa se torna a suspeita no. 1 e se vê obrigada a defender sua inocência em um longo e invasivo julgamento.  

A ideia central do filme de Triet, que assina o roteiro juntamente com Arthur Harari (repetindo a parceria de seu filme anterior, “Sybil”), é a de que a verdade, mais do que uma representação fática, é uma construção subjetiva.  

SABER AGIR DIANTE DO DESCONHECIDO 

Seu longa tem pouco interesse na revelação da culpa (ou inocência) de Sandra. Ao invés disso, a cineasta quer analisar como algo que é tido como certo muda de acordo com as narrativas que o cercam. Isso vai ficando mais claro conforme o julgamento toma um rumo mais pessoal, já que a acusação não consegue estabelecer culpa somente com as provas de perícias.  

Aos poucos, o casamento volátil de Sandra, seus casos extraconjugais, e inclusive sua bissexualidade são dissecados publicamente e viram munição na mão dos promotores. E a escritora, que tem aversão à expor seu foro íntimo, percebe que vai ter que jogar com a percepção que os outros têm dela para vencer o caso. 

Não há como negar que “Anatomy of a Fall” partilha muito da estrutura de dramas de tribunal. De certa forma, este é o filme mais narrativamente tradicional a ganhar a Palma de Ouro desde “O Pianista” em 2002. No entanto, Triet é fria em suas revelações, com as camadas do caso vindo à tona sem alardes – dando perfeito palco para a performance impecável de Hüller. 

Revelada às plateias internacionais com “As Faces de Toni Erdmann“, Hüller mostra aqui uma faceta completamente diferente de seu talento, fazendo da protagonista uma mulher calma diante de injustiças sistêmicas, mas desesperada nas falhas de comunicação conjugal. 

Como escritora, Sandra sabe o poder das narrativas e que suas sessões na corte são performances – mas isso não a impede de contar mentiras facilmente contestáveis no calor do momento. Uma personagem assim é um prato cheio para atriz, que confirma ser uma das melhores atrizes em língua alemã de sua geração. 

Com robustos 150 minutos de duração, o filme se estende um pouco além da conta – principalmente em sua seção pós-julgamento – mas sua trama faz a maior parte do tempo de projeção passar voando. Em seus desdobramentos, “Anatomy of a Fall” cativa por sugerir que o maior mistério não é desvendar o desconhecido, mas agir diante dele.