Principal faixa de filmes da Rede Globo, a Tela Quente deu um tempo nos blockbusters de Hollywood em janeiro deste ano para dar destaque a telefilmes vindos de todo Brasil. As obras produzidas em parcerias das filiadas da emissora com a Globo Filmes vieram da Bahia (“Beleza da Noite”), Distrito Federal (“Fuga de Natal” e “Amor ao Quadrado”), Ceará (“Baião de Dois” e “Guerra da Tapioca”) e Pernambuco (“A Presepada”). 

Agora, chegou a hora do Amazonas com “Deus Me Livre, mas, Quem me Dera”. A produção dirigida por Flávia Abtibol promete levar o colorido e a sonoridade do Estado para as telas de todo o Brasil ao reunir alguns dos principais nomes do audiovisual local. A estreia deve acontecer ainda neste segundo semestre na Rede Amazônica para o Amazonas, Amapá, Acre, Rondônia e Roraima e, em 2024, na Globo para o país inteiro. 

Gravado ao longo de duas semanas no mês de maio, o telefilme de 40 minutos traz uma comédia romântica conduzida por ritmos típicos do Amazonas como o forró, tecnobrega e, acima de tudo, o boi bumbá. “Deus Me Livre, mas, Quem me Dera” acompanha a história de Morena (Daniela Blois), uma jovem que trabalha em um barco no Rio de Negro ao lado da tia.  

Certo dia, uma banda emergente da Zona Leste de Manaus chamada X-Caboquinhos, liderada pelo personagem de Begê Muniz, chega à embarcação rumo ao Festival de Parintins sem uma cantora e terá de se superar para animar a viagem após uma baixa inesperada.

Rosa Malagueta, Arnaldo Barreto, Israel Castro, Wallace Abreu e o humorista de stand-up Leandro Leitte (“foi uma grande surpresa vê-lo atuando”, disse Flávia) também integram o elenco. A direção de fotografia é do premiado Yure César, direção de arte feita por Francisco Ricardo, ganhador de Gramado com “O Barco e o Rio”, a montagem fica por conta de Ana Lígia Pimentel, figurino de Adroaldo Pereira e som de Marinho Bello. 

O RIO COMO PROTAGONISTA 

Gravações na zona portuária de Manaus chegaram a reunir mais de 100 profissionais entre equipe técnica, elenco e figurantes. Foto: Ana Lígia Pimentel.

Um river movie. Flávia Abtibol define assim o novo trabalho, afinal, 80% de “Deus Me Livre, mas, Quem me Dera” se passa dentro do barco na rota Manaus-Parintins. “Não fosse este trajeto, as idas e vindas, e os banzeiros, toda esta história não teria a densidade que tem. Durante a viagem, pensei várias vezes na relação de um rio fluido, desafiador, iluminado pelo sol mesmo em momentos difíceis. O rio é um elemento, um ser que traz uma simbiose com o fluxo de vida das pessoas da Amazônia por estar presente o tempo inteiro”, afirma a diretora/roteirista, a qual já teve a zona portuária de Manaus em destaque em curtas anteriores como Dom Kimura” e Strip Solidão.  

As filmagens de “Deus Me Livre, mas, Quem me Dera” aconteceram ao longo de duas semanas. Nos primeiros dias na Manaus Moderna, a equipe chegou a contar com mais de 100 pessoas, incluindo, o elenco, profissionais da área técnica, figurantes e membros da tripulação do barco.

O DESAFIO DE SER UMA ARTISTA NO AMAZONAS 

Daniela Blois interpreta a protagonista Morena. Foto: Ana Lígia Pimentel

Com Flávia Abtibol na direção e roteiro e muitas mulheres no elenco, “Deus Me Livre, mas, Quem me Dera” representa bem a marca feminina do atual audiovisual amazonense, tanto na frente quanto atrás das câmeras. E o desafio de ser mulher no setor artístico e em um Estado altamente machista e conservador estão no centro do telefilme. 

A protagonista Morena, por exemplo, está presa a uma vida limitada no barco que a impede de sonhar em ser uma cantora como deseja. “A mãe dela foi atrás do sonho e acabou com a vida cheia de tropeços, o que levou a tia a temer o destino da sobrinha fora do alcance dela.  Daí, a Morena cresce com estas restrições. Apesar de gostar de cantar, ser muito apaixonada pelo festival e trabalhar em um barco que leva as pessoas rumo a Parintins, ela nunca usufruiu do evento”, disse a atriz Daniela Blois.  

Hoje morando em São Paulo e trabalhando como médica há três anos, a atriz nascida em Porto Trombetas, vila da cidade Oriximiná, no interior do Pará, pode recordar a infância e adolescência quando ia rumo a Parintins para curtir a festa de Caprichoso e Garantido, além da família paterna que morava na Ilha Tupinambarana. 

Vivendo a antagonista Lady, Isabela Catão (à dir) recebe orientações da diretora Flávia Abtibol. Foto: Ana Lígia Pimentel.

Já Isabela Catão, atriz presente em alguns dos mais importantes filmes amazonenses dos últimos anos, não enxerga em Lady uma vilã. A antagonista de Morena é cantora principal da banda X-Caboquinho, mas, deixa o grupo.  

“Ela chegou em uma fase da vida pela qual já passei de precisar existir pela própria arte. No caso dela, este desejo a leva a ter um comportamento não muito moralmente aceito. Sinto que a Lady foi ficando amarga, sendo capaz de qualquer coisa para chegar no objetivo dela – até vejo uma certa ingenuidade. A maldade dela não é aquela de matar alguém, mas, de topar tudo, negligenciando as relações ao redor, inclusive, com a própria banda”, disse Isabela.

projeto transformador

“Deus me Livre, mas, Quem me Dera” é ambientado durante o Festival Folclórico de Parintins. Foto: Ana Lígia Pimentel.

A primeira notícia de “Deus me Livre, mas, Quem Me Dera” aqui no Cine Set saiu em novembro de 2020. Na época, a produção seria dirigida por Fábio Baldo (“Antes o Tempo não Acabava”) e roteiro de Flávia Abtibol. Uma pandemia e a burocracia pelo meio do caminho mudaram os rumos do projeto. 

A primeira etapa desta longa novela começou há três anos quando a proposta venceu a disputa em meio a outros projetos locais para ser a obra amazonense naquilo que a Globo intitulava de Telefilmes Regionais. A previsão era que as gravações acontecessem no primeiro semestre de 2021, porém, o caos sanitário enfrentado por Manaus e o Estado como um todo impediu qualquer possibilidade disso se concretizar.  

A Covid-19, entretanto, não foi o inimigo de “Deus me Livre, mas, Quem me Dera” sair do papel. “O projeto era de fomento indireto, inscrito na Lei do Audiovisual com a captação garantida pela Globo Filmes. Só que existe um processo enorme para acessar. Ficamos um ano e meio para conseguir esta aprovação. Somente para abrir uma conta corrente levou quatro meses”, revelou Flávia Abtibol sobre a lenta etapa burocrática.

Filmagens aconteceram em maio de 2023. Foto: Ana Lígia Pimentel.

A liberação da verba aconteceu em novembro do ano passado, porém, como gravar no meio do período de chuvas? Somente após muitas idas e vindas, as gravações, finalmente, aconteceram em maio de 2023.  

No meio disso, uma rotina de videochamadas para elaboração do argumento e, depois, do roteiro com acompanhamento na primeira etapa do diretor artístico da Globo, Fabrício Mamberti, seguido por Jayme Monjardim (“Olga” e “O Tempo e o Vento”). Todos os passos observados de perto pela Globo Filmes e Rede Amazônica. Um processo completamente diferente de alguém acostumado a trabalhos sem supervisão externa. 

“Foi o projeto mais transformador em relação a processo de trabalho da minha vida. Sacudiu com tudo o que pensava que, antes, era algo mais voltado para um campo artístico de construção muito intimista. Deixei qualquer questão egóica de lado para ouvir as ponderações deles e brechas que não via. Foi sensacional pensar o processo de criação, entendimento de mercado e efetivação do trabalho com prazos rígidos, ajustar as práticas, foi sensacional. Me sentia desafiada o tempo todo”, declarou Flávia. 

O IMPACTO DA TELEVISÃO NO NORTE 

Lançamento na Rede Amazônica deve acontecer neste segundo semestre. Foto: Ana Lígia Pimentel.

Se a distribuição é um gargalo do audiovisual brasileiro, o desafio é ainda maior para os artistas da Região Norte. Apesar do crescimento do número de produtoras locais e dos filmes amazonenses ganharem o mundo em festivais, boa parte da própria população do Amazonas e de Manaus ainda não conhecem os curtas e longas feitos no Estado. Com a visibilidade na principal emissora do país, a expectativa é que “Deus me Livre, mas, Quem me Dera” consiga atingir um público recorde para uma obra do Estado. 

Para Flávia, a televisão ainda é a maior janela no Norte do país pelo fato de uma parte significativa da população não ter acesso ao streaming, além do interior do Amazonas não possuir salas de cinema em funcionamento. A diretora acredita que o telefilme pode trazer elementos simbólicos fortes para os nortistas.

Leandro Leitte é uma das novidades do elenco de “Deus me Livre, mas, Quem me Dera”. Foto: Ana Lígia Pimentel

Quando o público ver na tela os nossos biótipos e histórias, isso pode ajudar a ressignificar os olhares em relação aos artistas amazonenses, à nossa produção, sendo possível notar a qualidade do que estamos produzindo e a relevância do que contamos. Tanto o Norte quanto o Nordeste são o novo Brasil para o audiovisual; vejo um interesse verdadeiro das emissoras e dos streamings nesta regionalização. Não adianta aumentar a produção e não ter público. A alquimia do audiovisual é feita junto com o público”, completa a diretora. 

CONFIRA A ENTREVISTA EXCLUSIVA DE RAFAEL OCCHI AO CINE SET: 

Cine Set – Como surgiu a ideia para esta parceria entre Rede Amazônica, Globo Filmes e os realizadores locais? 

Rafael Occhi – Surgiu de um projeto da TV Globo, que trouxe a Globo Filmes para desenvolverem projetos cinematográficos regionais. A Globo, que é a TV dos brasileiros, tem se aprofundado cada vez mais para mostrar e valorizar as riquezas, culturas, sotaques e talentos locais de todo o Brasil. A Rede Amazônica segue a mesma lógica: mostrar a Amazônia com ênfase nas pessoas. A Amazônia real – e não aquela vista de forma distante, apenas como uma grande floresta. Esse encontro de propósitos recebeu a luxuosa consultoria da Globo Filmes, com toda a sua experiência no cinema nacional para selecionarmos os projetos locais. 

Cine Set – Como foram as etapas até a escolha do projeto do “Deus me Livre, mas, Quem me Dera”? Quantos projetos participaram do pitching e como foi definido o vencedor?  

Rafael Occhi – Primeiro nos colocamos como uma praça para receber o projeto. Queríamos ver a Amazônia representada. Depois, lançamos as inscrições. Cerca de 15 projetos foram inscritos. Fizemos uma primeira triagem, a partir de sinopses e argumentos, para chegarmos a três finalistas, que passaram por um processo mais aprofundado do pitching. Após essa etapa, nós, da Rede Amazônica, a equipe da Globo Filmes e também da TV Globo, decidimos em comum acordo que “Deus me Livre, mas, Quem me Dera”, da Flávia Abtibol, cumpria todos os requisitos que procurávamos. 

Yure César (à esq) é o diretor de fotografia do telefilme. Foto: Ana Lígia Pimentel.

Cine Set – O que você mais destaca de “Deus me Livre, mas, Quem me Dera” que pode atrair o público tanto daqui quanto de fora da Região Norte? 

Rafael Occhi – O filme entrega uma história que atende algumas premissas fundamentais que buscávamos durante os pitchings com os produtores locais: uma história aspiracional, que valorizasse o nosso regionalismo, com leveza e bom humor, sem cair na comédia pastelão. Mostrar o caos, mas também a tranquilidade e paz da natureza que nos cerca. Esses são elementos que, automaticamente, criam forte conexão com o nosso público, afinal de contas, tudo isso faz parte da vida da nossa população. 

Se pensarmos no público de fora do Amazonas e da Amazônia, queremos mostrar o que vai além do senso comum, do clichê, da Amazônia vista apenas como uma grade floresta. Isso é um fato – que todos nós nos orgulhamos muito, inclusive –, mas temos que lembrar que quase 30 milhões de pessoas vivem na região amazônica, e a cultura local é subrepresentada para o restante do Brasil. Acreditamos que o filme é um pequeno, mas importante passo para ajudar a mudar essa realidade em relação à representatividade da população e cultura amazônica. 

Cine Set – Quais foram os papéis da Rede Amazônica e Globo Filmes para apoiar a equipe local do telefilme e até mesmo nas gravações? 

Rafael Occhi – Um dos objetivos principais do projeto é o fomento à produção regional e à valorização de culturas de todo o Brasil, inclusive, mantendo a premissa de que as equipes, na frente e por trás das câmeras, fossem formadas com profissionais da região. Nesse sentido, a Rede Amazônica lançou o projeto e fez a conexão local com os produtores para que todos tivessem o entendimento, soubessem as condições e desenvolvessem suas sinopses para que fossem submetidas a um comitê formado por nós, da Rede Amazônica, pela TV Globo e pela Globo Filmes.  

Foi nosso papel orientar os produtores sobre as características do slot na TV aberta onde o filme será exibido, bem como trazer toda a nossa bagagem de inteligência e análise do comportamento de quem consome mídia, em todas as plataformas, na nossa praça. São olhares que fazem parte do nosso dia a dia e que inserimos nas discussões para a construção das propostas. Teremos também o papel de distribuir para outras plataformas, como o Globoplay, além de todo o pacote promocional para o lançamento, incluindo trailers e demais peças.  

Já a Globo Filmes é a fomentadora e a especialista no formato cinema, e é quem orienta o passo a passo tecnicamente, inclusive com a participação luxuosa de grandes profissionais que têm dedicado suas agendas à consultoria durante o desenvolvimento do projeto.  

Por fim, a TV Globo faz essa amarração estratégica entre esses diversos braços e mentes criativas, e orienta as ações, trazendo consigo o conhecimento da própria emissora sobre o processo de produção e também de experiências semelhantes em outras regiões do Brasil. 

Boi-bumbá estará no centro da história. Foto: Ana Lígia Pimentel.

Cine Set – O que representa para a Rede Amazônica este projeto? Como a emissora pode se aproximar ainda mais da cadeia do audiovisual amazonense e nortista? 

Rafael Occhi – Certos projetos são divisores de águas e esse, em especial, caminha com profundidade em direção à cena da produção audiovisual da nossa região, a qual está comprometida com o mesmo propósito da Rede Amazônica, que é ‘Integrar e Desenvolver a Amazônia’. Ao valorizarmos e darmos visibilidade nacional aos nossos produtores locais, estamos também incentivando que o Brasil e o mundo olhem para a Amazônia além da floresta.  

Olhem, principalmente, para as pessoas que vivem aqui. Do caboclo ribeirinho do interior, ao empresário que mora e investe na região. Do ambientalista que luta pela floresta em pé, àqueles que desenvolvem meios de gerar riqueza sustentável da Amazônia. Ainda é uma região com gravíssimos problemas sociais, pobreza, questões muito desafiadoras em temas como saneamento, uma desigualdade brutal, mas com uma perspectiva muito interessante, com diversos talentos brotando a todo momento nas mais diversas áreas, inclusive no audiovisual.  

Nossa campanha dos 50 anos teve com conceito “A Amazônia é o futuro” – o futuro do Brasil e do mundo, pela questão ambiental, e o nosso futuro como empresa, porque acreditamos e investimos em Manaus e em toda a Amazônia. 

Cine Set – Por fim, este projeto de telefilmes terá sequência? Podemos esperar mais produções nortistas ganhando a tela da Rede Amazônica e da Globo? 

Rafael Occhi – Sim. É um formato vencedor e já podemos dizer que outros projetos estão em desenvolvimento. É uma junção de desejos: pela TV Globo de mostrar todos os Brasis existentes, e o nosso, de mostrar a Amazônia como ela é, sob a nossa perspectiva, de quem vive aqui, de quem conhece e ama a região, e luta pelo seu desenvolvimento.