Poderia começar esse texto falando sobre como Barbie influenciou de alguma forma a minha vida, mas a verdade é que perdi o interesse em bonecas como ela antes dos oito anos e o mundo cor de rosa da estrela da Mattel nunca fez o meu estilo. Apesar disso, me deixei levar pelo hype de “Barbie”, por um simples motivo: Greta Gerwig. E, já que estou abrindo o coração, foi uma ótima razão. 

Ao lado de Noah Baumbach, Greta oferece a Barbie uma história contemporânea que se constrói em cima da mulheridade e o amadurecimento, temas presentes nos dois últimos filmes da diretora: “Lady Bird” e “Adoráveis Mulheres”. O roteiro escrito pelo casal consegue oferecer tridimensionalidade e humanizar o maior símbolo da ditadura da beleza utilizando sátira, ironia e um humor que te abraça, uma vez que realmente suas discussões e abordagens são tangíveis e críveis. 

Afinal, estamos acompanhando uma boneca que deixou de ser perfeita e precisa deixar seu mundo mágico, a Barbielândia, para encontrar, no mundo real, a menina que está brincando com ela e consertar sua situação. O filme bebe de características que rememoram o cinema pós-moderno para contar esta jornada. Para isso, Gerwig utiliza referências de clássicos do cinema, memes e o próprio universo da Barbie. Elas estão por toda a parte, desde a cena da abertura, o encontro em forma de homenagem entre criatura e criadora até a subida dos créditos. Esse mar de alusões cria uma atmosfera agradável, contudo bem mais familiar a quem está receptivo a mergulhar nos temas e contextos que tais citações chafurdam. 

IRONIA E AUTOCONSCIÊNCIA

As referências e a metalinguagem desse universo abrem espaço para que temas mais densos sejam apresentados, ainda que de forma superficial e leve, e assumam as rédeas imperceptivelmente do mote da projeção. Como o consumismo e o papel da Mattel na construção do ideal de beleza, – bem discutido, aliás, no documentário “Barbie – A Boneca em Desconstrução” – representados aqui pelos empresários liderados por Will Ferrel; além do patriarcalismo e a busca naturalizada deste padrão de beleza como algo intrínseco a personalidade feminina. 

Sem se levar a sério em demasia e tratando esses assuntos com muita ironia e autoconsciência, é fácil se levar pelo discurso e se identificar – que o diga os aplausos em minha sessão durante algumas cenas – principalmente quando se é mulher e vivencia os problemas expostos em tom de comédia. 

A busca da boneca por continuar perfeita, por exemplo, é a entrada para conflitos mais palpáveis e cotidianos femininos; os dilemas que se desenvolvem a partir disso também fazem parte da conjuntura em algum momento da vida das mulheres. A escolha de America Ferreira como a garota com quem Barbie (Margot Robbie) precisa se conectar e a pessoa que lança luz sobre as outras Barbies ao apelar para as micro-opressões vivenciadas rotineiramente é curiosa dado que, há uma década, Ferreira interpretava a versão norte-americana de “Betty, a feia”, a primeira da franquia que não precisou passar por uma transformação para ser bonita.

Já que esse embate não pertencia a personagem e preocupava-se com problemas mais emergentes, algo que também perpassa Glória (Ferreira). Afinal, ambas eram apaixonadas pelo ambiente em que se inserem e trazem racionalidade a este de forma dócil e amável. 

INVERSÃO DE PAPÉIS

Neste caminho, Gerwig volta-se para o amadurecimento de Barbie e Ken (Ryan Gosling). A jornada que traçam juntos e em paralelo os leva a obter conhecimentos que estavam além da caverna da Barbielândia, o roteiro acerta em mostrar o contraste da reação de ambos e como cada pessoa evolui de forma diferente, o que não significa que não estejam realmente maturados, visto que seus objetivos eram distintos. É preciso salientar que essa escolha é um dos ensejos alimentados pelos hates do filme, nada que uma leitura de “Prazer Visual e Narrativo” de Laura Mulvey não resolva, embora “Barbie” aborde o olhar feminino como o antônimo do olhar predominante masculino, o que determinantemente ele não é. 

O tratamento destinado ao Ken, sua insegurança e o desejo de ser notado pela protagonista – afinal ele só existe se ela o olhar – emula a visão dada as personagens femininas ao longo de mais de 120 anos de história do cinema. Quantas mulheres não são apagadas em detrimento das figuras masculinas? Quantas não estão ali apenas para servir como escada para o desenvolvimento deles? Ao menos Ken possui números bem elaborados e uma narrativa que também causa empatia, nem isso é dado as mulheres – como Marcos comentou em sua crítica a “Oppenheimer”. 

OLHAR CONTEMPORÂNEO E RECEPTIVO

“Barbie”, no entanto, é uma experiência imersiva. O design de produção e a trilha sonora nos remetem ao mundo mágico da personagem que acalentou a infância de muitas pessoas. As variadas versões da boneca, seu carro, sua casa, as roupas simbolizam uma volta as brincadeiras, a sororidade infantil e a algo que era uma realidade distante a muitas hoje mulheres que na época as famílias não tinham condições financeiras de oferecer esses produtos a elas. As escolhas da diretora, porém, ofertam a oportunidade de viver o que não puderam. 

Para mim, que tinha como Barbie favorita a “Ocean Friends” negra, devo admitir que uma das coisas que mais gostei na projeção foi a presença constante da Barbie advogada de Sharon Rooney. Essa é uma das poucas representações em que uma mulher gorda é tratada com naturalidade e como igual a todas as outras personagens, além de me sentir super representada, amei ver novamente a protagonista de “My Mad Fat Diary” tendo oportunidades no cinema em que não é uma aberração (hello, Dumbo). 

“Barbie” é mais uma prova e o produto do talento de Greta Gerwig. Além de trazer para a história da boneca um olhar contemporâneo e receptivo, ela o faz porque introduz as temáticas que marcam o seu cinema. Por isso, é fácil saber que este é um filme dirigido e escrito por ela e, sem dúvida, é o que torna este um longa especial, que não tem medo de tirar sarro de seus contratantes e nem de si mesmo, mas nunca perde o essencial: a magia da mulheridade e do amadurecimento.