Quero começar esse texto informando que assisti “As Marvels” como um filme único, sem a pressão e necessidade de compreender o tão “intricado” universo cinematográfico da Marvel. É partindo deste ponto que me indago se o filme dirigido pela excelente Nia DaCosta (“A Lenda de Candyman”) falha por repetir uma fórmula a qual somos submetidos pelo menos uma vez ao ano na última década ou se ela aponta não um caminho, mas um olhar diferente para heróis que o tal jeito imputado por Kevin Feige não nos permite aproveitar. 

Digo isso sem eximir ou justificar os erros que a produção possui. Começo por eles porque há claramente informações importantes para a compreensão da trama que são suprimidas. Parece haver um ruído entre roteiro e montagem, uma vez que a narrativa é ágil, mas a edição a deixa confusa, justamente por eliminar elementos significativos para a apresentação das personagens. O que é curioso, considerando o parco diálogo entre as séries e cinema que o MCU construiu até agora. 

VOTO DE RESPONSABILIDADE

Gostaria, no entanto, de observar “As Marvels” por um outro viés. Estamos diante do encontro de três personagens femininas — Carol Danvers (Brie Larsson), Monica Rambeau (Teyonah Parris) e Kamala Khan (Iman Vellani) — que, de maneira improvável, se unem e aprendem a trabalhar em equipe para salvar o universo. O nome escolhido para o time tem tudo a ver com os melodramas que as envolvem e tudo gira em torno de Danvers; enquanto Kamala é uma grande fã, por isso, sua alcunha de Ms. Marvel, Monica tinha Carol como uma tia. Essa inter-relação é uma base para o desenvolvimento tanto de suas personas quanto da trama, também assinada por Nia DaCosta. 

Danvers ainda recupera suas memórias e “As Marvels” parte das consequências não intencionais das escolhas anteriores da heroína, as quais, ao mesmo tempo em que conduzem à desestabilização do universo, também influenciam na forma como a equipe interage. Kamala tem uma verdadeira admiração pela figura heróica e é bom ver isso em tela, afinal quantas vezes o estereótipo de mulheres que se antipatizam é utilizado? Ver o contrário pode surpreender alguns, mas é divertido, pelo roteiro trabalhar isso com pé no chão, sem investir em uma atmosfera paternalista, optando, porém, na Capitã realmente confiando em Ms. Marvel como heroína. Um voto de responsabilidade que é compartilhado por Rambeau, enfatizando que, mesmo sendo uma adolescente, ela é vista como uma igual pelas suas companheiras. 

E, por falar nela, Monica Rambeau é a personagem que mais sofre com as más escolhas do roteiro e montagem. A começar na falta de profundidade que a trama oferece a ela: há um sentimento mal resolvido entre tia e sobrinha e “As Marvels” falha em não explorar e oferecer novas camadas. Danvers parece a clássica personagem que acumula dor e não consegue expeli-lá sem ferir quem está ao seu redor, enquanto Monica é alguém que carrega traumas infantis que a moldaram na adulta que temos em tela. Agora, imagina se isso fosse bem pontuado?

 UM NOVO MOMENTO

 “As Marvels“ não é construído como todos os filmes de super heróis ainda que as piadinhas, o herói salvando o dia estejam lá. Por outro lado, está lá também elementos de tentativa de uma abordagem diferente. E a maior prova disso é que este é finalmente o filme da Marvel no qual o protagonismo feminino funciona e realmente se trabalha questões presentes no cotidiano feminino, como, por exemplo, a mulher poderosa que não se enxerga como tal, a rede de apoio que as mulheres fornecem umas as outras, além da falta de maternagem feminina e como isso choca as pessoas, fora a preocupação latente em humanizar as pessoas com poderes. 

A motivação de Dar-Been (Zawe Ashton), por exemplo, talvez seja tão forte quanto a de Kilmonger em “Pantera Negra”. Facilmente, é possível enxergar as coisas pela sua perspectiva e perceber que nem sempre o herói salva o dia. É uma pena que tanto a personagem quanto suas preocupações não são aprofundados a ponto de sentirmos sua dor, como conseguimos em “Guardião das Galáxias 3”. Por outro lado, algumas lições  das escolhas equivocadas de Danvers e suas consequências ruins para um planeta inteiro ficam nas entrelinhas do discurso fílmico como a consciência de que só pode salvar quem consegue, o peso de suas cumprir suas promessas e a vergonha que carrega por falhar. Danvers é humana, ela falha e arca com os resultados. Isso deveria enriquecer a trama, porém o seu fechamento é mal desenvolvido e apressado. Estamos diante de uma trajetória de herói, que apunhala, mata, aniquila; ao mesmo tempo, temos uma história de alguém diante de seus fantasmas, cheia de fraquezas e solidão. 

Nesta ótica, “As Marverls” não é de todo ruim. Precisamos compreender que o tempo das explosões e de coisas grandiosas passou, talvez seja o momento de investir em outros tipos de heróis e isso Nia DaCosta nos oferece. O problema é que tanto a produção quanto nós ainda estamos imersos na era dos Vingadores. Devemos abrir os olhos e perceber que há algo novo no ar, algo que “Eternos” já nos apontava.