Na manhã seguinte à sessão de “Broker – Uma Nova Chance”, as imagens do filme seguiam permeando meus pensamentos. É que o novo longa de Hirokazu Kore-eda apresenta encruzilhadas tão complexas, que seus personagens ainda reverberam em nossas cabeças por um bom tempo após os créditos subirem. 

Após a Palma de Ouro por “Assunto de Família” (e uma breve incursão pela Europa com “A Verdade“), o diretor japonês viaja à Coreia do Sul desta vez. De cara, já fica claro que estamos navegando pelas águas tempestuosas do capitalismo – a cena inicial, com uma chuva torrencial caindo sobre os miseráveis da cidade, até faz lembrar “Parasita“. 

É claro que essa também se deve à presença do astro sul-coreano Song Kang-ho. Aqui, ele é Sang-hyun, o simpático dono de uma lavanderia. Acontece que o sujeito tira uma graninha extra com o esquema de venda de bebês que mantém com Dong-soo (Gang Dong-wan), seu parceiro de crimes. Moças jovens e desesperadas deixam seus bebês na “baby box” (sim, isso existe na Coreia do Sul) de uma igreja, e os dois apagam as imagens das câmeras de segurança e pegam os recém-nascidos. 

Moon Sun-ah (IU) é uma dessas mães desesperadas. O problema é que, quando muda de ideia e decide reaver seu filho, ela acaba tendo que acompanhar os dois numa viagem em busca de um comprador para a criança. 

Onde outrora os laços afetivos e arranjos institucionais pautavam as relações, agora é o capital quem faz esse trabalho – afinal de contas, “broker” significa “corretor”. Vemos, por exemplo, um casal de clientes barganhando o valor de uma criança com os vendedores (bebês frutos de estupro são mais baratos, ficamos sabendo). Neste mundo, ou você está vendendo alguém, ou está vendendo a si mesmo. Não há exceções na luta pela sobrevivência. 

E mesmo assim, algo como uma família se forma entre nossos personagens desajustados. Todos estão fazendo o melhor que podem, tentando se virar destrambelhadamente segundo suas lógicas torpes. Sun-ah, Dong-soo e Sang-hyun realmente se importam com o bebê que estão prestes a vender, mas estão determinados a achar um comprador mesmo assim (e que pague um preço razoável). Diante disso, o filme pergunta: essa família pode sobreviver ao capitalismo? 

A família em ruínas

Kore-eda passa longe do cinismo, mas também não é um romântico. Ele é alguém que entende que só é possível amar outro ser humano aceitando plenamente seus crimes e pecados. E Kore-eda é alguém que ama a humanidade. 

No centro de tudo, temos Song Kang-ho, espécie de figura paterna nesse rebanho de ovelhas desgarradas. Com seu rosto redondo, a boca sempre entreaberta, o jeito dócil e o sorriso largo, o ator emana calor humano. Mas é Gang Dong-wan como seu comparsa quem rouba o show, com seu jeito sereno e o olhar gentil e melancólico. Há uma cena sua com IU, em uma roda-gigante, que há de ser uma das melhores do ano. 

Kore-eda flerta com o melodrama (há, afinal de contas, uma referência explícita a “Magnólia” em uma cena), mas sua abordagem é mais contida. Ele só pede que passemos um tempinho com aquelas pessoas, que as vejamos mais de perto, cuidadosamente. Qualquer semelhança com o mundo real não é mera coincidência: Kore-eda usa a vida como matéria-prima, esculpindo-a com o coração.