Tenho uma adoração por filmes que ocorrem em um único cenário, e este apreço foi provocado por mestres como Sidney Lumet no seu clássico “Doze Homens e Uma Sentença” e Alfred Hitchcock em “Festim Diabólico”, dois ótimos laboratórios fílmicos para se trabalhar este tipo de proposta. É claro que se o diretor não dominar a ambientação, o resultado tende a se tornar cansativo para o espectador.   

“Cabana”, o primeiro filme de ficção da jovem cineasta paraense Adriana de Faria – que já passou pelo Festival Olhar do Norte e abocanhou vários prêmios na edição de 2020 com “Ari y Yo” -, é uma produção de época, que se passa em uma única locação (que dá o título a ele), com duas personagens femininas dividindo a cena.   

Ao se apropriar de fatos históricos, no caso o movimento popular da Cabanagem que aconteceu no Pará no período de 1835-1840 e caracterizado por uma revolta violenta gerada pela insatisfação com situação econômica e social da região, o curta narra a história de duas mulheres do movimento, Margarida (a amazonense Isabela Catão) e Maria Lira (a paraense Rosy Lueji) que se encontram na cabana do título situada no coração da floresta amazônica.   

É inegável que uma das forças do trabalho de Adriana de Faria é o rigor estético cuidadoso em que ela trabalha o único cenário do filme: a atmosfera espacial da cabana, traz uma dimensão intimista que enriquece muito a proposta narrativa em razão dos enquadramentos e planos próximos ao rosto das duas personagens, enaltecendo os elementos dramáticos e enviesando o conflito psicológico que move o filme.   

Os diálogos entre Margarida e Maria Lira são bem inventivos e trazem uma abordagem fantástica ao curta, já que ambas conversam numa espécie de “telepatia”, mas, que nas entrelinhas do texto, funcionam como uma metáfora para a violência psicológica que as mulheres – uma negra e outra com traços indígenas – sofrem até hoje e que se adequa a contextualização do movimento da cabanagem, que por sua vez, era liderado por indígenas, negros e pobres no enfrentamento das tropas regenciais do império brasileiro.   

Esse recurso silencioso utilizado de forma inteligente por Adriana também ressoa nos planos em detalhes que a sua câmera filma o cenário e os objetos que ajudam a situar a dimensão de tensão e medo das personagens e que se assemelha aos duelos morais dos filmes de faroestes.   

Isso é perceptível nos símbolos que vão aparecendo em “Cabana”: o sangue que desliza das pernas de Maria Lira indicativo da violência social, cujos lastros serão responsáveis em atrair as tropas regenciais até o local; a história de perdas pessoais que cada uma das duas relata em relação aos seus passados trágicos; a moeda que determina o cara e coroa entre vida e morte e o próprio final que faz uma ruptura entre passado e presente de forma mágica, se revelando um retrato amargo da violência que aflige mulheres, negros e crianças atualmente.   

É claro que o trabalho de Adriana se beneficia de ter em mãos uma ótima equipe. Catão e Lueji estão muito bem em cena na composição imersiva das suas duas mulheres lutadoras e o trabalho de montagem de Lucas Domires ao lado da direção de arte da dupla Bea Morbach e Tita Padilha criam um resultado incrível no campo imersivo de situar o espectador dentro daquele contexto de violência.   

No fundo, “Cabana” mostra que a experiência de Adriana de Faria no documentário ajudou a enraizar a proposta ficcional do seu primeiro curta, que por sinal, não apenas costura bem os elementos fílmicos a uma narrativa densa como também é um retrato fidedigno da violência que permeia a história nacional durante a época imperial, cujo rastro sujo de sangue, continua a proliferar o medo, a discórdia e a morte nos contextos mais íntimos da sociedade.