Após conceber a polêmica “O Mecanismo” e a ousada “Super Drags”, o catálogo de seriados nacionais na Netflix ganhou mais um nome de peso: “Coisa Mais Linda”. A série criada por Giuliano Cedroni e Heather Roth utiliza o surgimento da bossa nova como cenário para apresentar quatro fortes protagonistas mulheres e suas trajetórias em busca da independência e realização pessoal. Com um forte argumento no roteiro e ótimo aproveitamento do cenário musical para ilustrar a década de 1950 no Brasil, o seriado possui qualidades consideráveis e, definitivamente, se destaca até mesmo dentre as atrações internacionais do streaming.

“Coisa Mais Linda” é exatamente o significado da mistura entre culturas de seus idealizadores: uma história brasileira com diversos fatores de interesse para fazer sucesso no exterior. Ao juntar uma cidade emblemática e mundialmente conhecida com a ascensão da bossa nova e, de quebra, nadar na corrente do discurso feminista, a série deixa claro suas intenções de atingir o público de fora do Brasil assim como tantas produções conseguiram como a alemã “Dark” e a espanhola “La Casa de Papel”.

Na parte musical, a concepção da bossa nova é ilustrada por meio de cenas rápidas no decorrer dos episódios, mas, com presença massiva na trilha sonora. Porém, mesmo com uma constante ambientação no cenário musical, são as protagonistas do seriado que realmente geram interesse na história e carregam a narrativa nas costas, objetivo que fica claro logo nos primeiros segundos onde a série questiona: “uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza?”.

Personagens Femininas: autodescoberta e independência pessoal

O ano é 1959 e um novo gênero musical começa a surgir na então capital federal do Brasil: a mistura entre o samba nacional e o jazz americano cria os primeiros acordes da bossa nova. É neste contexto que a paulista Malu (Maria Casadevall) descobre ter sido deixada pelo marido e, com a ajuda de sua amiga Lígia (Fernanda Vasconcellos), decide permanecer no Rio de Janeiro e fundar um clube de música. Para fechar o elenco de protagonistas, Malu conta com a ajuda da empregada doméstica Adélia (Pathy Dejesus) e da jornalista Thereza (Mel Lisboa).

Mesmo unidas pela proposta de ajudar o empreendimento musical fazer sucesso, cada uma das quatro personagens apresenta em sua própria história temas relevantes e muito bem discorridos. Para começar, Malu vira mãe solteira repentinamente, mas decide deixar o filho em São Paulo para realizar seu sonho e jornada de autodescobrimento no Rio. O fato desta escolha ser feita em uma época na qual muitos direitos femininos ainda não eram defendidos é evidenciado em diversos momentos: a não aceitação por parte da família e a necessidade de um homem assinar os papeis do estabelecimento são alguns exemplos.

Ao abordar a história de Adélia, negra, mãe e analfabeta, já acostumada a uma triste realidade racista, “Coisa Mais Linda” consegue fugir da armadilha do ‘white savior’. Isso porque, apesar da personagem de Pathy Dejesus enxergar maior independência na possibilidade de trabalhar com Malu, a protagonista observa o quão é privilegiada e a existência de diferenças primordiais entre elas, rendendo uma das cenas mais fortes do seriado.

Além disso, a presença de Adélia como única protagonista negra não é utilizada como alívio cômico ou mera representação negra. A personagem possui uma carga dramática muito forte, revelando sempre as atitudes racistas e discriminatórias constantes da época. Neste sentido, é ótimo como a série mostra que, mesmo personagens consideradas boas, possuem atitudes preconceituosas com Adélia, evidenciando o contexto social da produção.

Além de Adélia, Thereza e Lígia também são personagens utilizadas para ressaltar debates pertinentes para o feminismo atual. A personagem de Mel Lisboa é uma das poucas mulheres de seu grupo social que trabalham, atitude considerada “moderna” para a época. Ela e seu marido possuem uma postura mais liberal por ambos manterem um casamento aberto, o que revela a bissexualidade da jornalista. Além disso, as cenas de Thereza em seu espaço de trabalho também destacam discursos machistas e as escassas oportunidades de emprego para mulheres, aspectos abordados sem exageros, mas presentes constantemente durante os episódios.

Por fim, Lígia cumpre seu papel como esposa de um político, porém ainda atormentada pelo sonho de ser cantora, o qual abandonou em detrimento do casamento. Juntamente de Adélia, Lígia possui uma das narrativas mais delicadas da série, pois, é dividida entre a vontade de cantar e o medo da violência do marido. Neste caso, a atriz Fernanda Vasconcellos consegue perfeitamente dar vida à dualidade que sua personagem passa, fazendo o espectador torcer a cada minuto por seu sucesso.

O quarteto de atrizes forma um elenco de protagonistas carismático e competente, dialogando perfeitamente com seu público. Além disso, as narrativas inseridas no roteiro também ajudam já que temas como independência feminina, racismo, violência contra mulher e bissexualidade são extremamente relevantes nos dias de hoje.

Você que é feita de azul…

Com a trilha sonora e os roteiros garantidos, “Coisa Mais Linda” também investe em um bom visual: design de produção e fotografia se complementam sem preocupação. Seja com iluminação de lâmpadas amarelas ou apostando nas sombras, as expressões de seus personagens – sejam as protagonistas ou não – transparecem durante as cenas, frequentemente apoiadas por planos fechados. Apesar da predominância de sequências noturnas, a série também é presenteada por belas e iluminadas cenas nas famosas praias do Rio de Janeiro e passeios pela cidade.

Já o design de produção aproveita as nuances na personalidade das protagonistas para criar inteligentes escolhas de cores entre os figurinos e cenários. Malu, por exemplo, abusa dos tons de azul, cor que também decora as paredes de seu clube musical, evidenciando, principalmente, a interdependência entre ela e o local. Tudo isto apoiado pelos figurinos minuciosos ao rememorar a passagem da década de 1950 para 1960 com a presença excessiva de acessórios como óculos, colares de pérola e chapéus.

O resultado da relação entre esta ambientação e a forma como a direção de fotografia captura a essência dos personagens rende momentos belíssimos, geralmente apoiados por um texto inteligente e eficaz.

Rio, eu gosto de você

Neste momento dramático do Rio de Janeiro, é muito bom ver “Coisa Mais Linda” dar um sopro de leveza à Cidade Maravilhosa. Apesar de possuir cenas na periferia e definir como “perigoso” o morro que Adélia mora, estas características não são utilizadas como motivadores da história ou justificativas para o roteiro. Grande parte da ação ocorre devido às escolhas dos personagens e suas consequências, sem basear a história em acontecimentos mirabolantes ou plot twists gigantescos.

A grande exceção a esta regra é justamente a sequência final da primeira temporada. Tudo ia bem com o desfecho até a cena na praia fazer a história desandar: a impressão é que “Coisa Mais Linda” precisava urgentemente de um cliffhanger (o tradicional final em aberto) para a próxima temporada e decidiu inserir um de última hora com uma motivação qualquer.

A escolha se mostra bem desnecessária já que durante o episódio final algumas promessas para a continuação já começavam a ser plantadas, e claro, se o espectador chegou até o final dos sete episódios provavelmente irá assistir uma segunda temporada.

Apesar deste deslize, “Coisa Mais Linda” é uma série com grandes chances de conquistar o público de dentro e fora do Brasil, principalmente, devido a suas atratividades no roteiro e qualidade em tantos quesitos. Ao retratar histórias especificamente femininas, a produção consolida sua força narrativa através de uma ótica sensível e inspiradora – uma combinação muito difícil de dar errado.